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quinta-feira, dezembro 26, 2024

Tetraplégicos trocam dedos pela boca e mostram que também têm espaço nos eSports

Deitado na cama e com as costas escoradas por travesseiros, Erik Tiago Leme, de 38 anos, assopra os três bocais de um controle de eSports (esportes eletrônicos) fixado na altura do rosto. Com a boca, ele faz o seu avatar do Free Fire, um jogo online de aventura que permite ao avatar saltar,  agachar-se, atacar e atirar. Pelo mesmo aparelho, usa a boca e o queixo para movimentar a câmera que exibe seu personagem.

“Esse controle tem três furos. Se assopro o do meio, ele atira. Se assopro o do meio junto com o buraco esquerdo, ele pula. Foi difícil me adaptar no começo, mas agora está bem mais tranquilo”, explica o gamer sobre o Quadstick, um aparelho feito especialmente para que gamers com deficiência e mobilidade reduzida possam jogar.

É o caso de Erik, que ficou tetraplégico depois de sofrer um acidente em 2011, quando nadava com os primos em uma lagoa de Araraquara, no interior de São Paulo. Ao dar um mergulho frontal, a água deslocou seu pescoço para trás com tanta força que fraturou as vértebras cervicais, a C2 e a C3, ao mesmo tempo.

Erik não consegue mover mais nenhuma parte do corpo do pescoço para baixo e é dependente de um respirador que o acompanha, imperiosamente, aonde vai. Além disso, a presença do tubo de traqueostomia era um obstáculo para a saída da sua voz, que, por anos, parecia um apanhado de falas sem volume.

Entediado por ter de passar horas vendo televisão e sem conseguir conversar, Erik decidiu se arriscar nos eSports para se divertir. E também porque sua noiva, fã de Free Fire, o incentivou a aprender para que jogassem juntos. Por ser considerado um jogo de estratégia, o Free Fire exige que os integrantes da equipe conversem entre si. Até então, para substituir a voz inócua, Erik usava um aparelho que o ajudava a digitar no computador usando o movimento dos olhos. Mas, depois que começou a jogar esportes eletrônicos, comprou um aparelho de jogo próprio para sua condição, o Quadstick, e passou a se empenhar mais para retomar a voz visando a uma melhor interlocução com o time.

“O meu pai não conseguia entender nada do que eu dizia. Era frustrante querer me expressar e as pessoas não entenderem. Quando consegui voltar a falar, a minha vida mudou completamente”, disse.

Kevin Lucas Inácio, morador de São Paulo, é conhecido no universo gamer como Cadeira FPS. Hoje com 26 anos, ele nasceu com atrofia muscular espinhal, uma doença degenerativa que o impossibilita de andar e mexer os braços. “É basicamente igual ao Stephen Hawking”, explica, referindo-se ao físico teórico e cosmólogo britânico reconhecido mundialmente por sua contribuição à ciência — é um dos mais renomados cientistas do século 20.

Mas nem sempre foi assim. Até os 12 anos, Kevin ainda podia contar com parte da sua mobilidade e até usava as mãos para jogar PlayStation 2. Uma escoliose (curvatura lateral da coluna), provocada pela doença, porém, apertou os pulmões, comprometendo o funcionamento do órgão e tornando-o dependente de um respirador. Como Erik Tiago, ele joga com a boca por meio do Quadstick.

O objetivo é fazer do seu canal na Twitch, um serviço de streaming ao vivo (as lives) muito popular entre os gamers, uma fonte de renda. “O que é ser livre para uma pessoa que depende de outra até para coçar a cabeça? Que liberdade eu posso desejar? A liberdade financeira, talvez. É o único meio que eu vejo”, comenta.

Não tem sido tão fácil. Ele conta que o retorno financeiro tão aguardado ainda não veio e que, apesar de o desânimo bater algumas vezes, não desiste. “Alguma coisa me diz que as lives vão dar certo. Não sei em que momento, mas elas vão dar certo.”

Gabriel Félix, de 25 anos, morador de Buritama, no interior de São Paulo, mostra que ser tetraplégico e monetizar com jogos eletrônicos é possível. “Eu cheguei a conseguir, num dia, R$ 1.300 na Twitch”, conta. “O dinheiro me ajudou a comprar um aparelho de eletroestimulação.”

Em 2017, ele sofreu um acidente durante um treino de jiu-jítsu um dia antes de participar do seu primeiro campeonato. Quando ele tentava aplicar um golpe, seu pescoço atingiu o chão, comprimindo a medula e fraturando a quinta vértebra da coluna cervical. “Na hora, eu perdi todos os movimentos. As pessoas até achavam que estava brincando, mas infelizmente era sério e grave.”

Há dois anos, ele começou a se aventurar nos esportes eletrônicos. Apesar de jogar apenas por diversão, participa de torneios. As premiações são outra forma de obter renda no meio amador. “Eu indico que sou tetraplégico, mas às vezes jogo de igual para igual com quem não tem deficiência”, diz.

Um desses adversários foi Gabriel Toledo de Alcântara, popularmente conhecido como Fallen. Ele é jogador profissional. No ano passado, conheceu Gabriel Félix pela Twitch, sensibilizou-se com a história dele e resolveu presenteá-lo com a Scorpion, uma cadeira gamer feita para pessoas com deficiência.

“Jogar me ajuda muito na parte psicológica. Até então, eu só assistia à Netflix. Como não tenho movimentos, em diversas situações do jogo parece que as partidas me dão uma descarga de adrenalina.”

O professor Li Li Min, titular do Departamento de Neurologia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), explica que o hábito de jogar provoca ganhos em processos de reabilitação de pessoas com tetraplegia. “O sistema nervoso não diferencia o real do imaginário. Então, alguém com tetraplegia está ativando regiões do cérebro responsáveis pelo movimento, mesmo que o movimento não ocorra. Isso é uma vantagem em termos de plasticidade de reabilitação”, explica.

Os três personagens tiveram dificuldade para comprar o Quadstick, controle necessário para que um tetraplégico possa jogar. A tecnologia é produzida por um único fabricante nos EUA, que vende apenas quatro aparelhos por semana. “É disputado pelo mundo todo”, comenta Erik Tiago, que teve o seu produto taxado quando tentou importá-lo.

O Quadstick custa 549 dólares, o que, na cotação atual, corresponde a R$ 2.680, sem contar os custos com a importação do produto e a compra de suportes, como hastes que fixam o aparelho. Os três recorreram a vaquinhas ou contaram com a ajuda de amigos que estavam nos EUA e puderam adquirir o produto por um preço mais acessível.

Além de pouco inclusivo, o universo dos games pode machucar. Sob o véu da internet, em que identidades e informações são facilmente manipuláveis e omitidas, os gamers entrevistados pelo Estadão contam que pessoas usufruem uma falsa liberdade para ofender alguém quando comete um erro nas partidas. “A comunidade do CS Go é muito tóxica”, afirma Kevin Lucas sobre seu jogo favorito, o Counter Strike. “Os argentinos já me chamaram de ‘macaco’ e ‘burro’. Já vi brasileiros falando que eu não sirvo para nada ou que deveria desinstalar o jogo.”

A violência manifestada nas plataformas já levou Gabriel Félix a dar uma palestra sobre o assunto em uma escola. A diretora do colégio o convidou porque viu que os estudantes o xingavam em excesso e que tal comportamento poderia estar associado à prática de esportes eletrônicos. “Eu contei um pouco da minha história e disse a eles que não sejam tóxicos com as pessoas porque muitas vezes não se sabe com quem se está jogando. Às vezes, pode ser uma pessoa igual a mim. Às vezes, o jogador é mais sensível e não tem um psicológico tão bom. Às vezes, alguém só queria estar ali para se distrair, e não para ser xingado.”

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Fonte: R7 – E Sports

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