A enchente do último fim de semana no Rio de Janeiro trouxe à tona a realidade de um carioca pouco lembrado: o jacaré-papo-amarelo, espécie que habita a capital desde antes da chegada dos colonizadores e que, segundo biólogos ouvidos por Oeste, foi historicamente abandonado pelo poder público. No sábado 13, levados pelas águas, os répteis entraram até mesmo em quintais de casas.
Jacarepaguá, na zona oeste, um dos maiores bairros o Rio, guarda em seu nome a comprovação da presença secular dos animais na capital fluminense: significa “Vale dos Jacarés”, em tradução do tupi-guarani.
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O biólogo Ricardo Freitas Filho, doutor em ecologia e evolução, trabalha com esses seres há mais de 24 anos por meio do Instituto Jacaré, criado por ele no Rio. “A espécie deveria ser o símbolo da cidade, mas, ao contrário, é vista como invasora”, afirmou.
Mário Moscatelli, outro biólogo que atua na cena carioca, endossou a fala do colega. “O lixo é confundido com comida e acaba matando o animal”, disse. “No Rio de Janeiro, quem corre risco não é o ser humano, mas o jacaré.”
O crescimento desordenado das cidades no caminho dos jacarés
Os especialistas explicam que o principal fator que leva os bichos para as áreas urbanas em temporais é o crescimento desordenado da capital e da Baixada Fluminense. “Um problema histórico”, dizem. Com as chuvas, o nível dos rios, transformados em valões de lixo e esgoto, se eleva e pressiona os animais a se deslocarem.
“A cidade cresceu de forma desordenada tanto nas áreas nobres quanto nas carentes, sem fiscalização”, observa Ricardo, ao acrescentar que a presença do tráfico e das milícias no Rio impede os especialistas de entrarem nas favelas e resgatarem os animais.
Freitas Filho preocupa-se com o alinhamento com os gestores públicos: “Não existe plano de manejo, nem de resgate ou interesse por estudos mais sofisticados para a questão”, disse.
O biólogo acredita que a prefeitura tenha ainda algumas lacunas na gestão ambiental a serem preenchidas. “A principal barreira de monitoramento e estudos que encontramos na proteção desses animais se chama Secretaria de Meio Ambiente da Prefeitura do Rio de Janeiro”, afirmou.
O especialista lamenta não haver mais parceria na troca de conhecimento com as secretarias. “Eles não têm tanta capacitação técnica para fazer esse trabalho”, afirmou. “Nem sempre as coisas andam. O Instituto Jacaré sempre se disponibilizou para trabalhar em conjunto, por vezes, sendo tratado pela prefeitura como desnecessário.”
Moscatelli chama a atenção para a importância de fazer as leis existentes na defesa da fauna silvestre serem cumpridas “O que não faltam são leis”, constatou. “Existe, por exemplo, desde 1965, uma legislação de amparo às faixas marginais e proteção de rios e lagos, mas é praticamente desconhecida do poder público.”
Secretaria de Meio Ambiente e Clima do Rio afirma ter projetos e monitorar os jacarés
A Secretaria de Meio Ambiente e Clima do Rio (SMAC), sob gestão da urbanista e arquiteta Tainá de Paula (PT), vereadora licenciada, afirmou que o Programa de Proteção à Fauna e Flora da Cidade serve para reforçar “os cuidados, principalmente com espécies ameaçadas, como é o caso do jacaré-de-papo-amarelo”.
“Temos resgates realizados pela Patrulha Ambiental, e nossas unidades de conservação da natureza garantem o abrigo para esta e outras espécies”, disse o gerente de operações em unidades de conservação da SMAC, o biólogo Jorge Pontes, doutor em ecologia.
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Pontes ressaltou que a SMAC conta com o apoio de pesquisas de universidades públicas. Segundo ele, essa parceria já devolveu a população de jacarés para o Parque Natural Municipal Bosque da Barra, na zona oeste.
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Pontes também destacou a importância da conscientização dos moradores: “A população precisa ajudar na proteção dessa espécie, não alimentando os jacarés, denunciando caçadores e relatando a presença dos animais fora de suas áreas naturais.”
Qual a solução para a questão dos jacarés no Rio de Janeiro?
Ricardo apresenta o que seria a solução na questão dos jacarés. “Deveríamos ter refúgios para a vida silvestre em uma cidade de enorme biodiversidade, em contato com áreas urbanas, como é o caso do Rio”, disse. “É preciso criar uma central de controle e resgate específico, além de santuários.”
O especialista destaca que a Floresta da Tijuca, a Floresta da Pedra Branca, os lagos de Jacarepaguá e o Parque de Tinguá, em Nova Iguaçu, são unidades de conservação, mas acredita ainda ser preciso a criação de mais refúgios ecológicos.
O biólogo afirma que a caça desses animais, proibida por lei, é uma realidade que ameaça a população de jacarés do Rio. De acordo com ele, muitos também são capturados para reprodução ilegal em cativeiro.
Como proceder ao encontrar um jacaré em áreas urbanas?
Moscatelli afirma que esses répteis só atacam quando ameaçados. Portanto, orienta o biólogo: “Em caso de encontrar um jacaré nas ruas ou quintais de casa, deve-se ligar para o Corpo de Bombeiros e jamais mexer ou se aproxima-se dos animais”.
Ricardo ressalta o fato de os animais estarem sendo resgatados por profissionais muitas vezes sem experiência e treinamento no manejo, colocando-os também em risco. O biólogo afirma que nem sempre os bombeiros conseguem fazer a captura e a devolução dos jacarés para o sistema lagunar da cidade.
“Necessitamos da criação de uma central de controle e resgate específica de jacarés” disse. “O Rio precisa de pessoas capacitadas para fazer o resgate de maneira digna. É preciso experiência para pegar um animal com medo, acuado e cansado.”