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segunda-feira, novembro 25, 2024

Morrer é buscar a bola no fundo do gol e nunca mais voltar

Prefiro chamar de metas os meus sonhos. Arre! Acabo de meter os pés pelas mãos. Metas não. O termo metas remonta ao mundo empresarial corporativo. Um escândalo. Vou denominá-los objetivos. Assim fica mais adequado. Ainda que não me reste grande coisa. Eu suponho. Sonho é um substantivo que soa por demais fantasioso, longínquo, nada factível. Algo como dividir o palco com Paul McCartney ou tomar um sorvete com Scarlett Johansson. Por mais que se queira, não vai rolar.

O primeiro objetivo de que me lembro foi querer me casar com a professora do segundo ano do Ensino Fundamental. Fundamentalmente, o romance melou já no nascedouro. Eu tinha 6; ela, 26. Total incompatibilidade de gênios. Ela queria trigêmeos; e eu, pular a amarelinha, brincar de pique-esconde e lamber o próprio catarro. Foi o meu primeiro amor platônico. Contraí catapora, mas, não contraí núpcias com a dita-cuja. Um baque violento na minha vida amorosa.

Nem tanto assim. A objetivo seguinte foi aspirar a ser um jogador de futebol. Eu me amarrava no Rivelino. Por causa do bigode, da marra e do drible do elástico. Tentei imitá-lo, mas, o elástico arrebentou, caí no asfalto e fraturei o rádio. Gostava também do Renato. Do goleiro Renato. Ele defendia as cores do Fluminense em meados dos anos 1970. Eu queria ser como o Renato. Bonito. Cabeludo. Praticante de verdadeiros milagres sob a trave. Rivelino não. Rivelino era um ídolo estelar, campeão mundial, areia demais para o meu caminhãozinho de projetos particulares. Eu não usava a perna canhota nem para entrar no ônibus escolar.

Por falar em caminhãozinho, recordo-me que, aos 8, desejava ganhar um autorama. Eu sei que não tem nada a ver o cu com as calças, mas, ambas eram máquinas. E eu não era uma máquina. Ainda. Tinha sentimentos comoventes. Cheguei a escrever uma carta prolixa, condoída, para o Papai Noel, mas, papai, em carne e osso, cortou o meu barato ao informar que Papai Noel não existia. Era um personagem criado pelo mundo capitalista para estimular as vendas do comércio varejista no final do ano. Portanto, se eu quisesse, podia tratar diretamente com ele, sem rodeios, sem intermediários. Eu quis. Pedi o tal autorama com o coração apertado, tomado de esperança.

Ao contrário do que se diz, a esperança é a primeira que morre. Cabisbaixo, abatido, papai explicou que autorama era presente para filhos de gente rica. Éramos uma família de classe média. O gasto supérfluo no Natal estava totalmente fora do orçamento familiar. Teria que me contentar com um presente mais em conta. Algo como um carrinho de pressão que a gente sovava contra o assoalho, repetidas vezes, até enrolar a mola do mecanismo por dentro. Daí, soltávamos o bichinho e ele partia em alta velocidade pela casa, acertando os calcanhares dos adultos. Foi um presente divertido, à altura das possibilidades, apesar dos cascudos recebidos por conta dos calcanhares afetados.

O tempo passou. E como passou arrastado. Parecia ter duzentos anos de idade. Até que, um dia, cismei que seria médico. Não tenho certeza quando essa vontade surgiu. Acredito que tenha sucedido por influência de um tio-avô chamado Fidelmino Scarpelli. Era um velhinho simpático, boa praça, amoroso ao extremo comigo e com os meus irmãos. Servira como médico generalista numa pequena cidade do interior de Goiás, onde fazia partos, arrancava balas, dava notícias ruins e emprestava dinheiro a juros. Admirava as mãos do Tio Fidelmino. Pareciam perfeitas para um esculápio. Falanges peludas, sóbrias e confiáveis. Ele gostava de nos agradar comprando no mercado municipal pastéis de queijo e empadinhas com azeitona dentro. Naquela época, todas as empadinhas levavam azeitonas no recheio. Azeitonas com caroço. E não tinha cristão que se prestasse a extraí-los por cortesia. A gente se virava sozinho. De tempos em tempos, o tio aparecia lá em casa com uns periquitos presos dentro duma caixa de papelão, com furos nas laterais para que não morressem asfixiados. Amávamos aquele homem velho e gentil, ainda que nos ensinasse a criar aves em gaiolas.

No início dos anos 1980, na fila de inscrição para o vestibular, quase mudei a minha opção para o curso de jornalismo. Andava influenciado por um amigo com quem me entrosara. Escrevíamos poesia, apaixonávamo-nos pelas mesmas garotas e compúnhamos canções ao violão. Faz muito tempo que isso sucedeu. Continuo a tocar violão, a fracassar nos romances, mas, desafortunadamente, já não somos tão amistosos um com o outro. Uma pena. Viver conserta, mas, estraga pessoas também.

Não tinha planejado me tornar um médico assistente de mulheres. O interesse aconteceu de forma natural. Feito um trauma. Foi durante a graduação, quando auxiliei um parto normal que, à primeira vista, parecia anormal à beça. Gritos. Gosmas. Cocô. E sangue. Muito sangue do cordeiro, ou melhor, muito sangue do cordão e da placenta. A minha missão era não desmaiar, permanecer firme ao lado da parturiente e confortá-la. Segurar a sua mão. Enxugar o suor da testa. Testar os sinais vitais. E dizer para ela não se preocupar. No final das contas, tudo daria certo, como, de fato, aconteceu. Fiquei bolado. Não acreditava que um bebê daquele tamanho coubesse numa vagina. Era um fenômeno elástico incrível. Animalesco. Um milagre da classe dos mamíferos.

Comparava os corpos humanos aos automóveis. Com o tempo, ficavam desgastados, avariados, perdiam potência e começavam a dar um pouco mais de manutenção. Portanto, de repente, desapontado com a vida, comecei a pleitear objetivos tolos, de cunho onírico, uma espécie de recaída, do tipo escrever um livro, aprender a tocar outro instrumento musical, montar uma banda, fazer tatuagem, fumar maconha e voltar para os bancos de uma faculdade. Claramente, eu batia as bielas. Eu voltava a idealizar objetivos com cunhos de ingenuidade, com a pureza de um menino. Já não era mais puro, nem ingênuo, muito menos, menino. Anda assim, corria o risco de me tornar infantilizado na senescência. Um fenômeno cruel e obsceno da natureza humana.

Chegamos aos dias atuais. Confesso que o meu objetivo mais recente é manter a sanidade mental até o final da linha. Continuar com a ignição razoável, ou melhor, com a cognição razoável, pegar de primeira, conectado com as pessoas e com as coisas da vida real, por pior que eles possam parecer. Um ser humano minimamente hígido para regar o próprio jardim. Autossuficiente como uma flor. Seguro e confiável como o Renato. O goleiro Renato. Até tomar um frango humilhante. E buscar a bola no fundo das redes para nunca mais voltar.

Fonte: R7 – Cinema

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