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quarta-feira, dezembro 25, 2024

Feijoada infinita do Star City tornou-se incompatível com a Santa Cecília renovada

Na primeira vez em que cruzei o portal do tempo para o vetusto salão do Star City, meu pensamento foi: “Dou uma semana para este lugar fechar”.

Errei por pouco. Foram só 30 anos de diferença entre minha profecia e o encerramento das atividades do Star City, um monumento à nostalgia culinária em São Paulo.

O restaurante anunciou, a menos de uma semana do aniversário da cidade, que nunca mais servirá sua feijoada infinita.

Chamo de feijoada infinita o sistema de serviço do Star City. Naquela primeira vez, em princípios dos anos 1990, fiquei um pouco assustado.

Havia acabado de me servir a primeira pratada, e lá chegou o garçom. Sem dizer palavra, retirou a cumbuca de feijão e caminhou em direção aos fundos da casa. “Calma lá, meu considerado! Aonde pensa que vai?”

Voltou em poucos minutos com a cumbuca repleta. No Star City era assim: quando você começava a cogitar a possibilidade de algo acabar, aparecia um garçom para fazer a reposição.

É um tipo de serviço que já estava em desuso no fim do século passado, superado pela sensatez chata da feijoada à la carte e pelo bufê coma-até-passar-mal, que prescinde da intervenção dos garçons.

Além do Star City, até onde eu sei, apenas dois restaurantes trabalhavam nesse esquema. O Gouveia, na avenida Santo Amaro, foi-se há tempos. Sobrou o Bolinha, cujos preços sempre foram meio proibitivos para mim –culpa da localização aristocrática, no Jardim Europa.

Já o Star City era plebeu e acolhedor, transpirava decadência charmosa numa Santa Cecília que também parecia já ter visto o auge.

O letreiro, com um orgulhoso “desde 1953”, quiçá estivesse lá desde 1953. Antes da porta propriamente dita, havia uma vitrine com garrafas de uísque com três, cinco, dez litros. Tão velhas quanto a casa e severamente desbotadas pelo sol.

O salão era pequeno, com mesas pequenas (era preciso aproximar aparadores para servir o festim do feijão), algumas situadas em nichos com bancos inteiriços de courvin vermelho.

Os guardanapos de pano vinham dobrados artisticamente e posicionados sobre os pratos, já postos na mesa antes da chegada dos clientes. Por cima da toalha branca, havia outra de cor ocre –mesma tonalidade da capa do espaldar das cadeiras.

Tudo isso já era muito antiquado 30 anos atrás, quando lá fui pela primeira vez. O salão estava às moscas naquela noite.

Sim, noite. Nos bons tempos, o Star City oferecia sete dias e sete noites semanais de feijoada infinita. Era um sábado à noite quando resolvemos desbravar aquela portinha curiosa, eu e um ex-amigo.

Sim, ex-amigo. Assim como os bons restaurantes e a feijoada infinita acabam um dia, às mais sólidas amizades vem o rompimento. Pode doer mais do que o fim de um casamento, mas voltemos ao Star City.

Voltamos lá um sem-número de vezes, pois a feijoada era muito boa. Não a melhor do Brasil, o que seria pretensão tola para uma feijoada que já era infinita.

Meus amigos e eu tínhamos uma fantasia a respeito daquela feijoada. Imaginávamos, lá no fundo do restaurante, um caldeirão que nunca era esvaziado por completo. Tínhamos medo de um dia conhecer a cozinha e comprovar nossa hipótese, que ainda me parece plausível.

Depois de muitos anos afastados, retornei ao Star City em 2022, para escrever uma resenha. Tudo estava igual. O salão, os uísques da entrada, a feijoada e até os mesmos garçons da minha juventude.

Ainda estava lá o samovar cromado, de onde saía a batidinha de limão inclusa na feijoada infinita. Perguntei se ele ainda era usado, e o garçom Luís respondeu que só quando a casa enchia muito. Em outras palavras, quase nunca.

O Star City era imutável –nisso residia seu fascínio–, porém precisou de se adaptar ao longo de sua longa existência. Como nem a feijoada infinita é eterna, sucumbiu às transformações do mundo, do Brasil e de seu entorno.

Santa Cecília, que eu julgava decadente no século passado, renasceu de tal forma que não admite mais o Star City em sua modernidade inclusiva. Etarismo? Não creio. Apenas um ciclo que se fecha.

O Star City poderia ter se renovado e se tornado uma caricatura de si mesmo. Optou por perecer com altivez, depois de sete décadas de excelentes serviços prestados a São Paulo. Tem o meu respeito.

Fonte: Folha de S.Paulo – Gastronomia

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