Artigo publicado em revista internacional foi liderado por pesquisador do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Brasília
Um novo estudo realizado por pesquisadores da Universidade de Brasília, da Universidade Federal do Tocantins (UFT), e da Universidade de Oxford, na Inglaterra, publicado na revista científica Journal of Animal Ecology, mostra como três espécies de lagartos do Cerrado – uma das áreas mais ricas em biodiversidade do mundo – estão reagindo a variações de regimes de queima e do clima.
>> Confira o artigo Severe fire regimes decrease resilience of ectothermic populations
O Cerrado, bioma considerado “berço das águas” do Brasil, enfrenta um aumento crescente de incêndios (queimadas descontroladas) devido ao desmatamento e às secas prolongadas, resultantes da crise climática global. Os pesquisadores investigaram como a resiliência demográfica de lagartos varia com as taxas de sobrevivência, crescimento e reprodução. A resiliência demográfica se refere à capacidade das populações de resistir e se recuperar de distúrbios no ambiente, como incêndios ou mudanças no clima. O estudo considerou três componentes principais dessa resiliência:
1. Resistência: a habilidade de uma população de evitar a diminuição no número de indivíduos durante um distúrbio, como uma queimada.
2. Compensação: quando, após um distúrbio, a população consegue não apenas se manter, mas até aumentar de tamanho. Isso acontece quando as espécies se adaptam ou se ajustam de alguma forma.
3. Tempo de Recuperação: depois de passar por um distúrbio, as populações podem levar algum tempo para voltar ao que eram antes. A recuperação é o tempo que elas levam para estabilizar sua estrutura.
Esses três aspectos ajudam a medir quão bem uma população pode sobreviver e se ajustar às mudanças no ambiente, como as provocadas por queimadas e alterações climáticas.
DADOS CONSIDERADOS – Os pesquisadores analisaram 14 anos de dados de monitoramento mensal, usando uma abordagem sofisticada de modelagem para entender como o clima e os regimes de queima afetam as taxas vitais (como sobrevivência, crescimento e reprodução) de três espécies de lagartos do Cerrado: Copeoglossum nigropunctatum¹, Micrablepharus atticolus² e Tropidurus itambere³.
Apesar de terem estratégias de vida bem diferentes, estas espécies convivem nos mesmos ambientes, o que permitiu aos pesquisadores estudar como elas reagem aos regimes de queima e mudanças na vegetação causadas pelo fogo, dependendo de suas preferências por microclimas e habitats específicos. Isso torna cada espécie um exemplo único de como os animais podem se adaptar a distúrbios ambientais.
A Reserva Ecológica do IBGE (RECOR), em Brasília, área escolhida para o estudo, é um exemplo raro e extremamente valioso de um experimento natural de longo prazo. Iniciado em 1989, esse projeto foi planejado para estudar os impactos do fogo no Cerrado, a savana mais biodiversa e ameaçada do mundo. Antes disso, entre 1972 e 1990, a área foi completamente protegida contra incêndios, o que permitiu aos cientistas terem uma base sólida para entender como os ecossistemas respondem aos diferentes regimes de queima.
O experimento, que abrange 10 hectares de área dividida em parcelas, foi pioneiro ao submeter essas áreas a diferentes regimes de queima prescritos (queimadas controladas) que ocorrem em épocas específicas (início, meio ou final da estação seca) e com frequências variadas (a cada dois ou quatro anos). Desde então, os dados coletados nessas parcelas têm fornecido informações cruciais sobre como plantas e animais respondem ao fogo e às mudanças climáticas.
Esse experimento, idealizado há mais de três décadas, é uma rica fonte de descobertas para a ciência e é único, já que permite uma observação direta das consequências de diferentes regimes de queima em longo prazo, algo raro em estudos ecológicos. Graças à continuidade e ao rigor desse projeto, é possível compreender melhor hoje como as populações de espécies nativas do Cerrado se adaptam e resistem a distúrbios ambientais, ajudando a direcionar políticas de manejo mais eficientes e sustentáveis.
O estudo revelou que, embora os lagartos sejam mais resistentes em cenários de queima severa, isso diminui drasticamente a capacidade de compensação e recuperação dessas populações. A pesquisa sugere que graus intermediários de queima podem ser mais benéficos para a resiliência a longo prazo.
“Em um período de intensificação das crises ambientais, nossos resultados destacam a importância de promover a heterogeneidade no manejo das queimadas, evitando que regimes severos, como grandes incêndios, homogeneízem o ambiente e prejudiquem a capacidade de recuperação da fauna”, aponta Heitor Sousa, pesquisador do Departamento de Zoologia do Instituto de Ciências Biológicas (IB) da Universidade de Brasília, que liderou o estudo.
Além disso, a pesquisa levanta preocupações sobre as limitações reprodutivas de algumas espécies, especialmente aquelas com ciclos de vida mais longos e baixa taxa reprodutiva, que enfrentam maiores desafios para se adaptar a essas novas condições. Essas descobertas são de extrema relevância para a gestão ambiental e a formulação de políticas públicas, uma vez que os regimes de queima descontrolados não só ameaçam a biodiversidade, mas também a estabilidade ecológica de regiões chave como o Cerrado.
O artigo conclui que, embora as espécies estejam se adaptando, o ponto de inflexão de estabilidade para muitas delas já pode ter sido alcançado. Com isso, há uma janela de oportunidade para reverter parte dos danos, mas a ação precisa ser rápida e coordenada.
Em tempos de desafios ambientais sem precedentes, as evidências científicas apontam para a necessidade de um novo olhar sobre o manejo do fogo e o combate às mudanças climáticas no Brasil, como formas de garantir a sobrevivência da nossa biodiversidade e a preservação dos ecossistemas mais preciosos.
“Ao compreender melhor como essas populações reagem aos distúrbios ambientais, temos a chance de desenvolver estratégias mais eficazes para mitigar os efeitos das mudanças climáticas e dos incêndios”, avalia o pesquisador Guarino Colli, professor do Departamento de Zoologia do IB, coordenador da Rede Biota Cerrado e um dos autores do estudo.
¹ Copeoglossum nigropunctatum é um lagarto de tamanho médio, que pode crescer até cerca de 15 cm. As fêmeas dessa espécie são vivíparas, ou seja, dão à luz filhotes já formados, em vez de botarem ovos. Elas podem carregar até nove embriões por um período longo, entre 10 e 12 meses. Essa espécie é encontrada tanto no Cerrado quanto na Amazônia.
² Micrablepharus atticolus é um lagarto bem pequeno, com cerca de 5 cm de comprimento, e é exclusivo do Cerrado. Ele põe poucos ovos (1 a 2 por vez), mas é capaz de produzir várias ninhadas ao longo do ano.
³ Tropidurus itambere é um lagarto de tamanho intermediário, com cerca de 10 cm. Ele coloca várias ninhadas ao longo da estação reprodutiva, com 5 a 8 ovos por vez. Essa espécie é comum no Cerrado e se alimenta principalmente de pequenos invertebrados, como formigas.
Fonte: SECOM UnB