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segunda-feira, novembro 25, 2024

‘É mito dizer que brasileiro não gosta de ler’, diz Itamar Vieira Jr., traduzido para mais de 20 línguas – Entrevista

Escravidão contemporânea, figuras femininas fortes, laços familiares, religiosidade, cultura africana, herança indígena e disputa por terra.

Há cinco anos o baiano Itamar Vieira Jr., de 44 anos, mantém-se como o autor mais lido do país com temas que debatem a identidade nacional ao mesmo tempo em que captam elementos universais da alma humana.

Ele pode até ter surpreendido quando vendeu, em plena pandemia, mais de 1 milhão de cópias do romance Torto Arado (R$ 69,90, 264 págs., Todavia).

Mas agora, já com a sequência, Salvar o Fogo (R$ 76,90, 320 págs.), nas livrarias, Vieira Jr. trabalha na última obra dessa trilogia com status de best-seller: teve traduções feitas até para o mandarim e precisa conciliar sua rotina com eventos literários ao redor do mundo.

Em entrevista concedida ao R7, ele falou do bom momento da literatura nacional, da licença que tirou para se dedicar à carreira de escritor e também detalhou um pouco de seu processo de criação.

R7 Entrevista — A gente vê que está cheio de crianças, de jovens, envolvidos com literatura. Você acha que tem mais espaço para fazer uma produção mais engajada?

Itamar Vieira Jr. — Eu tenho percebido com grande surpresa que, por exemplo, o romance Torto Arado tem um público leitor jovem muito expressivo. Sei, por exemplo, que tem muita indicação de leitura desse livro no TikTok. Recentemente, ele foi adotado também pelo PNLD, o Programa Nacional do Livro Didático. Então, recebo muitas mensagens de jovens em escolas fazendo uma apresentação teatral, apresentando trabalhos sobre o livro, ou apenas fazendo uma leitura coletiva.

Você tem um fã-clube no Instagram, o Tortoaraders, que inclusive impulsionou a pré-venda de Salvar o Fogo, no ano passado. Como é a sua relação com eles?

Ele surgiu de maneira espontânea e isso é sempre muito bom, né? Ter esse retorno dos leitores que se identificam com aquela história, assim como eu me identifiquei ao escrevê-la. É sinal de que temos interesses comuns. Então, é uma relação de afeto.

Tenho visto que você está viajando bastante para o exterior, participando de diversos eventos literários. Qual o impacto disso tudo?

Essas feiras são muito importantes para a promoção da leitura, para circular com os autores. No caso da Bienal do Rio, por exemplo, que fez 40 anos em 2023, é um evento que envolve todo o mercado livreiro.

Mas há cidades do interior que têm promovido encontros dessa natureza que nem têm uma livraria. Então isso acaba com esse mito de que o brasileiro lê pouco, de que não gosta de ler. Porque acho que falta mesmo a oportunidade de as pessoas conhecerem a literatura.

Como é que as pessoas lá fora recebem essa literatura tão brasileira, com uma identidade nacional tão forte?

Esse é outro ponto que também me intriga, porque, enquanto escrevia Torto Arado, não imaginava sequer que havia leitores no Brasil que tinham uma identidade nacional para se interessar por essa história. Fui surpreendido e o que os leitores me dizem é que ela lembra parte da história do nosso país. Mas aí, quando chega ao público estrangeiro, eu já não consigo explicar, porque é algo alheio à vida deles.

Ainda assim, é um romance que trata de temas que atravessam culturas, países. São sentimentos que todos nós guardamos como seres humanos. É o desejo de liberdade, de afeto, de dignidade. Isso é algo que acompanha a condição humana.

Eu vi que você está escrevendo esse terceiro romance, que completa a trilogia do Torto Arado. Queria saber como ele está na sua cabeça.

Eu tenho dois momentos nesse processo criativo. No primeiro, é como se eu fizesse uma imersão nesse plano imaginativo mesmo. Eu conheço os personagens. Estou aqui vivendo essa história no meu corpo, na minha vida interior. E aí eu sei mais ou menos os meandres dela. Em outro momento, que é quando eu sento de fato para escrever, eu acho que eu conheço a história. Mas eu vou me surpreender com ela, também porque ela vai se revelando ao longo da escrita.

Tem alguma coisa que você pode adiantar?

Sim, mais ou menos. Essa narrativa continua centrada no campo. Então, quando eu falo de terra, território, não é apenas o espaço do agricultor. Estou falando de tudo. É do chão que nós pisamos, que é fundamental para a dignidade humana.

Eu vi que você tirou uma licença do seu trabalho como geógrafo concursado do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Você acha que vai sentir falta? Vai voltar? Como estão seus planos?

Essa licença foi porque eu não conseguia mais conciliar as duas coisas. E aí eu pedi um tempo. É uma licença não é remunerada. Tenho experimentado viver de literatura. Eu tento não criar expectativas, tenho um pé bem no chão, sabe? No começo, eu senti falta da minha rotina. Afinal, foram 17 anos trabalhando no mesmo lugar. A gente cria vínculos com colegas, com trabalho, com aquela experiência. A pandemia foi algo que me ajudou, porque a gente não tinha eventos, não estava circulando. Então, era mais fácil ocupar meu tempo livre à noite com eventos virtuais. Aí, depois, foi ficando mais difícil.

Você é bastante reconhecido? Quando foi que você se deu conta de que tinha se tornado uma pessoa famosa?

Principalmente no meio literário, né? Mas também quando a gente faz coisas banais, como ir ao supermercado, ao aeroporto e as pessoas pedirem autógrafo, pedirem foto. Aí eu percebi que… Nossa, que fugiu do controle.

Quais foram os autores que mais te influenciaram?

Sempre é injusto dizer, porque termino deixando pessoas de fora. Mas tenho especial admiração pela literatura brasileira, por autores como Machado de Assis, Jorge Amado, Lima Barreto, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa… Escritores que li há mais de 20 anos… Fora do Brasil, muitos outros, né? Como alguns autores americanos, como Toni Morrison, James Baldwin, Alice Walker e William Faulkner. E autores do Haiti, também, como o Jacques Roman.

E quem desse ramo literário você acha que hoje faz a diferença além de você?

Estou pensando aqui na Carla Madeira, na Eliana Alves Cruz, no Jeferson Tenório e na Socorro Acioli, que fazem um trabalho incrível. Acho que a literatura brasileira contemporânea vive um momento muito bom. Com excelentes histórias, mas também com público leitor interessado.

E o lado ruim da fama? De você falar alguma coisa de que as pessoas não gostam e ser até mesmo ameaçado?

No ano passado, o país estava mesmo conflagrado, por causa das eleições. Era um momento que exigia de nós uma responsabilidade. Mas a gente sofre as consequências desse posicionamento. Sempre que posso, falo sobre aquilo que é caro para mim. O medo sempre passa pela nossa cabeça, mas para viver é necessária certa adoração dose de coragem.

Como podemos lutar contra uma questão tão viva na sua obra que é o racismo estrutural que a gente tem no país?

O racismo é um problema que diz respeito a todos. Ser branco ou ser negro é uma construção histórica e social. Não há diferenças biológicas expressivas entre nós, né? Pertencemos a uma mesma espécie, a espécie humana. Então, quando falamos de racismo, estamos falando do combate à desigualdade que foi instaurada por nossa história colonial, escravagista, que criou um ranking de vida e de valor que nunca foi desconstruído. E isso é algo que a gente precisa fazer. É um acordo coletivo, um acordo social que faz parte do nosso projeto democrático.

Como nós, críticos literários, podemos melhorar o nosso trabalho?

Todo o escopo literário da crítica brasileira hoje é uma construção colonial, que é ainda eurocêntrica. É como se os críticos brasileiros sempre estivessem esperando o surgimento de um James Joyce ou de um Marcel Proust. E existem outras maneiras de narrar a história. Outras ontologias que não são as europeias, né? Como as da diáspora africana, as indígenas.

Um caso clássico é o Prêmio Nobel. Não é possível que só europeus e norte-americanos escrevam bem. Se você for olhar a história do Prêmio Nobel, pouquíssimos foram dados a outros continentes. A gente precisa descolonizar até a crítica das nossas universidades.

Eu vi que você chegou a comentar os casos de racismo envolvendo o Vini Júnior. Queria saber o que esses episódios podem ensinar para a gente.

Olha, casos assim, com grande apelo midiático, seja pela representatividade de quem está sendo o alvo do racismo, seja pelas circunstâncias, não são nem a ponta do iceberg. Isso aí é uma fração do nada. Ele existe explicitamente, mas ainda há uma grande parte que é sutil, que está ali submersa. E a gente precisa identificar tudo isso para poder de fato desconstruir esses valores. De qual vida vale mais, qual vida vale menos. O que é que importa como arte, o que é que não importa. Esses casos servem para que a gente se eduque. É o projeto humano. Todos nós somos humanos.

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Fonte: R7 – Entretenimento

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