TAMARA NASSIF
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)
Desde que começaram a circular as primeiras notícias sobre a criação de um concurso público nacional unificado, os cursinhos preparatórios entraram em uma “operação de guerra”. O objetivo: preparar os alunos para o maior certame do país, sobre o qual pouco se sabia.
O burburinho começou em agosto, um mês antes de o MGI (Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos) dar algumas pistas do que viria a ser o CNU (Concurso Nacional Unificado), cujas inscrições abriram no dia 19.
À época, o que se sabia era que o governo federal planejava promover uma forma de seleção semelhante ao Enem, reunindo todas as vagas para o serviço público em uma mesma prova.’
O desafio, porém, estava no “como”. Concursos são conhecidos pelo alto grau de especificidade e, até aquele ponto, não se sabia a viabilidade de reunir questões de instituições públicas totalmente distintas em uma mesma avaliação.
Ao todo, como foi posteriormente anunciado, serão 6.640 vagas para 21 órgãos ligados ao governo federal, como ministérios e o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
A solução criada pelo MGI foi dividir o concurso em oito blocos temáticos -cada um com seu próprio edital-, de forma a agrupar conteúdos similares e direcionar candidatos com vocação para certas áreas, mantendo a possibilidade de disputar mais de uma vaga em um mesmo bloco.
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Para o governo federal, a iniciativa dará celeridade ao recrutamento de milhares de servidores públicos; para os cursinhos preparatórios, uma dor de cabeça.
“Os alunos ficaram muito apreensivos, porque, até então, era tudo muito preto no branco: estudava-se com base nos editais antigos”, diz Gabriel Granjeiro, CEO da Gran Cursos, startup de educação (edtech, no jargão do setor) voltada para essas seleções.
“Além do CNU não ter antecedente, sabíamos que ele seria diferente [dos outros] já com as informações preliminares do governo. Foi divulgado que seriam oito blocos, então pegamos os editais anteriores [dos 21 órgãos federais], os temas mais recorrentes em diferentes blocos temáticos e as disciplinas mais procuradas para cada tipo de concurso. Daí montamos um curso ‘pré-edital’”, explica.
Era o que dava para fazer àquela altura. No Estratégia Educacional, edtech para certames e vestibulares, o plano de ação foi o mesmo: construir um produto “pré-edital” com base nos concursos anteriores.
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“Todo o mercado [de concursos públicos] só tinha os editais anteriores e o Enem como parâmetro. Imaginávamos que seria muito difícil unir áreas tão diferentes em blocos e eixos temáticos semelhantes em um concurso público, porque teríamos carreiras muito técnicas e outras mais generalistas em uma mesma prova. Não sabíamos como isso tudo ia acontecer”, afirma Wagner Damazio, diretor de arketing do Estratégia.
Ao mesmo tempo em que pesavam as dúvidas, crescia o número de interessados. Ainda que não divulguem dados concretos, ambos os cursinhos -que são líderes no mercado- relataram alta procura de candidatos, em especial aqueles que não consideravam fazer carreira no serviço público antes do CNU.
Como são cursos EAD (ensino à distância), a demanda também tem se expandido para fora dos grandes centros urbanos, já que a prova será aplicada em 220 cidades do país -um dos trunfos do “Enem dos Concursos” por mitigar gastos de deslocamento e hospedagem. A avaliação de especialistas consultados é que, com o CNU, o serviço público será mais inclusivo e representativo da população brasileira.
PRODUÇÃO A TOQUE DE CAIXA
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Agora, a prova já tem data oficial: será em 5 de maio de 2024. Com a publicação dos editais, no dia 10 de janeiro, os cursinhos começaram a destrinchar os conteúdos previstos nos eixos temáticos de cada bloco.
Começou, então, uma briga com o calendário. É consenso entre os cursinhos: os oito editais pegaram todo mundo de surpresa.
“Muitas disciplinas clássicas não vieram e foram substituídas por temas novos. Auditor fiscal do trabalho, por exemplo, que tem o maior salário inicial de todas as oportunidades, não terá direito processual do trabalho, um assunto diretamente ligado à carreira”, diz Damazio.
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Outro exemplo: língua portuguesa, matemática e raciocínio lógico, antes figurinhas carimbadas para todas as carreiras, não serão cobradas nos blocos de 1 a 7, voltados a candidatos com ensino superior. No lugar, entraram disciplinas como realidade brasileira, com temas como políticas públicas, direitos humanos, diversidade, inclusão e meio ambiente.
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A prova vai exigir que os candidatos comprovem engajamento com o serviço público, “espírito republicano” e a compreensão do que é o Estado democrático de Direito -sem desembocar em questões de “lacração” e partidarismo, segundo o próprio MGI.
O objetivo é atestar a flexibilidade de quem quer atuar no setor público. Especialistas ouvidos pela Folha afirmaram que o exame deve ser elaborado de modo a extrair respostas analíticas e técnicas dos candidatos, não a opinião política ou conhecimentos gerais de língua portuguesa e matemática.
Essa reconfiguração do conteúdo programático tem forçado uma corrida contra o tempo entre os cursinhos: da publicação dos editais até a data da prova, contam-se 116 dias.
O primeiro grande desafio do Estratégia Concursos foi identificar o que já havia de conteúdo pronto e quais seriam os professores mais adequados para produzir o que faltava. “Tópicos como ética, integridade e desafios do Estado de Direito são muito amplos, com potencial de perspectivas sociológicas, econômicas, jurídicas. Precisávamos entender quais eram os profissionais mais acertados para tratar de cada tema, inclusive com interdisciplinaridade”, explica Damazio.
Lá, 74 professores foram realocados para ministrar aulas e produzir material de apoio, que, em alguns casos, terá mais da metade escrita a toque de caixa.
“Nós tivemos o cuidado de abrir cada tópico dentro dos eixos temáticos, de forma que, em alguns deles, teremos aulas ministradas por até quatro professores de diferentes matérias”, relata Victor Tanaka, especialista em concursos públicos do Estratégia.
Gabriel Granjeiro, do Gran Cursos, relata que os candidatos buscam o conteúdo “para ontem”, o que tem acelerado a produção interna de livros digitais e materiais enxutos para revisão.
“Nós criamos um grupo de guerra para um concurso que tomou vida própria e caminha para ser o maior da história. São 40 professores produzindo conteúdo diário para alimentar a rotina de estudos dos alunos”, diz.
Mesmo com a surpresa, os especialistas veem o conteúdo programático com bons olhos -sobretudo por nivelar candidatos de primeira viagem a “concurseiros profissionais”, aqueles que estão habituados à rotina de estudos para certames.
A avaliação é de que, como boa parte dos temas são inéditos e não há uma prova anterior para comparação, a vantagem competitiva de quem já se prepara para concursos há mais tempo foi reduzida.
“A capacidade de planejamento, organização e absorção de conhecimento nessa reta final vai ser um diferencial”, afirma Damazio.
“O CNU permite que novos interessados no serviço público consigam brigar de igual para igual com os concurseiros profissionais, contanto que haja empenho e organização.”
Ou, nas palavras de Granjeiro, “concurso, sobretudo o CNU, não é só para quem é ‘cabeção’”.