Ser capaz de rastrear a cadeia produtiva do café é um dos maiores desafios do setor atualmente.
Recentemente a União Europeia aprovou uma lei que, entre outras coisas, proíbe a importação de certos produtos –incluindo o café– provenientes de áreas desmatadas. A norma, que começa a ser aplicada em janeiro de 2025, exige evidências de que de fato não houve desmatamento naquela propriedade nos últimos anos.
A aprovação da lei provocou uma correria dos exportadores por rastreabilidade, como mostrou o Café na Prensa.
A indústria doméstica, contudo, ainda carece de mecanismos sofisticados nessa seara. As principais fabricantes do Brasil ainda não possuem políticas tão rígidas de fiscalização da cadeia produtiva.
Responsável por marcas como Nescafé, Nespresso e Dolce Gusto, a Nestlé instituiu uma política de rastreabilidade há alguns anos e afirma que, hoje, 100% do café que adquire é rastreável.
Graças em grande parte a essa iniciativa, a empresa foi mencionada como uma das líderes em aspectos de ESG no estudo Coffee Brew Index, inclusive no quesito ambiental. Ao mesmo tempo, é a principal empresa no mercado de café em cápsula, que produz uma quantidade de lixo gigantesca.
Questionada sobre a aparente contradição, Taissara Martins, head de ESG para cafés e bebidas da Nestlé Brasil, afirma que as cápsulas incomodam o consumidor, por causa do lixo com o qual ele fica ao fim do preparo, mas que a embalagem responde por apenas 10% das emissões de carbono de todo o processo.
Na entrevista concedida ao Café na Prensa, Martins fala ainda sobre outros gargalos da rastreabilidade e como manter-se competitivo enquanto paga mais caro por uma matéria-prima sustentável, entre outros assuntos.
Veja abaixo os principais trechos.
As grandes empresas do setor não possuem fazendas de café. Elas na verdade compram e conduzem o processo industrial de beneficiamento, torra e embalagem. E muitas vezes esses cafés são adquiridos de intermediários, sem qualquer contato direto com os agricultores. Mas, geralmente, os grandes problemas sociais e ambientais da cadeia produtiva do café se concentram justamente no cultivo. Nesse cenário, como enxerga a indústria de café diante da capacidade de rastrear a cadeia produtiva?
Taissara Martins – Existe uma tendência das pessoas acharem que rastreabilidade é você saber da onde vem e acabou aí. Mas a gente acredita numa rastreabilidade mais profunda, que, além de eu saber da onde vem, eu trabalho com essa pessoa que está me fornecendo. Esse é o ponto da rastreabilidade completa.
Você fez a leitura correta: não só da Nestlé, mas o padrão do café no mercado brasileiro realmente é compra através de traders [intermediários, que compram de agricultores e revendem para empresas].
Mas comprar de trader, na nossa visão, não minimiza a sua responsabilidade sobre a cadeia.
Então nossa tomada de decisão foi: eu compro café de um trader, mas eu preciso ter um guarda-chuva de contato direto com meus fornecedores.
Então hoje a gente conhece 100% dos nossos produtores e a gente vai nas fazendas pelo menos uma vez por ano.
A gente vem articulando para que a certificação seja uma coisa padrão da categoria, para que todo mundo possa crescer nessa direção. Mas hoje, pelos nossos números –e são fontes internas nossas–, estima-se que só 15% do café brasileiro seja certificado.
Quando diz certificado, quer dizer uma certificação que permite a rastreabilidade completa, é isso?
É, é isso. Porque a certificação me garante dados da fazenda. Então mesmo que eu compre através do trader, ele me passa essa lista de produtores.
E aí eu estava comentando. Dos 15% de café certificado, ou que a gente consegue garantir que tem essa clareza da rastreabilidade, metade disso é a Nestlé que compra. Eu acredito que a outra metade seja exportada.
A prática do setor é comprar um blend de produtores. Então talvez você pegue um trader que monta um blend e vende para as empresas. Se fala muito sobre critérios de qualidade e muito pouco sobre quem está por trás desse café.
A legislação brasileira está alinhada com as atuais necessidades socioambientais do setor? O que poderia melhorar para forçar as empresas a seguirem padrões mais rígidos?
Adoraríamos que fosse uma legislação a necessidade da certificação. Isso colocaria todo o setor em outro lugar. Mas talvez essa seja a resposta mais simples ou a resposta em que a gente terceiriza a responsabilidade ao setor público. Eu acho que aqui existe um papel importante dos grandes compradores. E eu acho que pedir a certificação é o primeiro passo, e ele deveria ser o fundamental.
Além da certificação, a gente tem que acoplar outras coisas também. Então me preocupa quando eu vejo o setor praticamente inteiro que ainda não está nem na base zero, que seria a certificação.
Então eu acho que tem uma responsabilidade compartilhada. E não só de compradores, mas de fornecedores também. O café que se passa na mão dos traders é muito grande. Tem muita gente atuando nessa compra e venda com o produtor.
As grandes empresas do setor têm mecanismos de rastreabilidade, mas essas ações normalmente se concentram em linhas gourmet da marca. Mas o grande volume de produção se encontra nas linhas mais baratas. Então como conciliar práticas de fair trade e sustentabilidade e ao mesmo tempo ser competitivo?
Sim, esse é o desafio. É mais simples você acoplar a rastreabilidade no premium. Mas Nescafé, quando a gente olha o core de Nescafé, que é o café solúvel, que é o café que está na cesta básica, é aí que entra a maior parte do nosso orgulho. Porque foi aí que a gente conseguiu esse casamento perfeito entre certificação, rastreabilidade, bônus ao produtor e sem perder competitividade. É claro que, se você chegar lá na prateleira, vão existir diferenciações. E a gente acredita que provavelmente boa parte dessa diferença que vai acontecer entre um solúvel padrão Nescafé e os demais provavelmente é isso. O custo que a gente paga na matéria-prima é um pouco mais caro. Mas para a gente isso é inegociável. Então o que eu tenho que fazer é trabalhar em todo o restante da minha cadeia, garantir muito mais eficiência produtiva, garantir um time enxuto, garantir essa ajuda que a gente pede aos nossos traders…
Então, sendo muito pragmática na resposta, hoje a gente ainda não consegue ser tão competitivo no café mainstream. Parte disso está atrelado à responsabilidade que a gente tem na cadeia. Mas a diferença, sendo muito honesta, é muito pequena. Inclusive o consumidor não sente.
A Nestlé global foi mencionada como uma liderança importante em aspectos de ESG no último Coffee Brew Index, inclusive no quesito ambiental. Ao mesmo tempo, é a principal empresa no mercado de café em cápsula, que produz um lixo enorme. Não parece um pouco contraditório? Como vocês conseguiram alcançar isso a despeito de ter um portfólio tão grande no mercado de cápsulas?
Acho que a pergunta é ótima. Porque a gente levanta discussões que precisam ser levantadas. A primeira delas é a percepção que as pessoas têm em relação a embalagens. Embalagem é um tema, porque é aquilo que o consumidor fica na mão, no fim, depois que ele consome, especialmente a cápsula de café. Ele fica com aquele lixo na mão. E aquilo incomoda.
Mas, falando sobre conceito, quando a gente olha sustentabilidade, a gente tem que olhar todo o processo. Quando a gente olha o principal indicador de sustentabilidade hoje, que é a pegada de carbono, a gente vê que 70% da pegada de carbono da Nestlé –e não acho que vai ser diferente dos demais– está na produção da matéria-prima.
Por mais que a gente ache que a embalagem seja o grande ofensor, na verdade, por exemplo, com a Nestlé, é 10% da minha pegada. E quando a gente olha as cápsulas de café, é a mesma coisa. Quando eu pego a pegada de carbono das cápsulas de café, a embalagem é o terceiro item. Eu tenho antes a produção de café; depois eu tenho a própria energia gasta pelas máquinas; e depois eu tenho as cápsulas.
Então os esforços que a gente faz –e que está a maior parte da nossa energia e do nosso investimento– é onde está a maior parte da pegada. E por isso que se justifica. Essa decisão da Nestlé, lá atrás, de café certificado, café livre de desmatamento, agricultura regenerativa, tudo isso hoje nos coloca nessa posição.
Porque no fim das contas, se eu resolvesse 100% das minhas embalagens, se todas as minhas cápsulas pudessem ser como as cápsulas de NEO, que são de papel e somem em seis meses, se eu fizesse todo esse esforço, eu só resolveria 10% do meu problema.
Quais são as principais metas e compromissos da Nestlé na área de sustentabilidade?
Quando a gente se tornou um café 100% certificado, em 2019, a gente viu que a gente estava pronto para avançar mais um step, que era o step de agricultura regenerativa.
Então a gente acoplou essa peça a mais do regenerativo, e aí entram os nossos compromissos. A gente quer ter 30% de café regenerativo até 2025, ou seja, a gente tem um ano para bater essa meta.
Hoje estão em quantos por cento?
Hoje estamos em 18% de agricultura regenerativa.
A Nestlé Global fez o objetivo de 20%. Aqui no Brasil, dado o fato de que o Brasil é um dos principais fornecedores de café para a Nestlé e o maior produtor de café do mundo, a gente subiu essa régua um pouquinho e decidiu falar de 30%. Então a gente tem 30% até 2025, 50% até 2030 e depois a gente quer, de alguma forma, considerando o nosso objetivo como empresa net zero até 2050, que essas fazendas sejam grandes capturadoras de CO2.
Como vê a indústria de café nas questões ambientais e sociais nos próximos anos?
Eu acho que a gente já está à frente de muitos outros países porque o Brasil tem dois critérios muito importantes. O primeiro é uma alta produtividade. O produtor brasileiro é muito eficiente. E, quando você é eficiente, você precisa de menos área, menos adubo, menos defensivo… E o segundo ponto é que a produção de café no Brasil é muito estabelecida. A gente vê menos expansão de produção e mais café nos mesmos lugares produzindo mais. Então mais tecnologia, variedades mais resistentes… é diferente talvez de outras culturas, que a gente ainda vê a necessidade de uma expansão. E quando a gente vê essa expansão agrícola, a gente entra nessas conversas complicadas atreladas a desmatamento.
Então eu acredito não só que o Brasil vai continuar sendo o fornecedor de café do mundo, como ele vai ser o fornecedor de café sustentável.
Sustentabilidade é fundamental, mas o consumidor ainda procura preço. Não acha que empresas que não possuem boas práticas socioambientais continuarão com espaço no mercado, desde que consigam ter preços mais baixos?
Eu acho que a gente não pode minimizar a consciência do consumidor brasileiro sobre esse tema, ainda que ela não esteja no mesmo patamar, por exemplo, do consumidor europeu. E a gente sabe que, especialmente o café, que é um item de cesta básica, consumido por todos os brasileiros todos os dias, seria um pouco ingênuo a gente dizer que nos próximos cinco anos, se o café não vier de origem sustentável, o consumidor brasileiro vai dizer que não quer. Não acho que isso vai acontecer. Mas é fato também que as novas gerações são muito diferentes do que a gente viveu até agora.
Não vejo risco no sentido de: ‘amanhã essas empresas vão estar fora do mercado?’ Não vão estar. Mas cada vez mais elas vão ficando para trás.
TAISSARA MARTINS, 35
Formada em engenharia agrônoma pela Unesp, tem MBA executivo no Insper e está na Nestlé Brasil há mais de 14 anos. Atualmente, ocupa o cargo de head de ESG para cafés e bebidas da empresa.
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