Um cavalo bate os cascos nas pedrinhas portuguesas da Praça dos Três Poderes em Brasília. A imagem é impactante e poderosa. A cena, experienciada em sonho, repete-se com pequenas variações ao longo de “Cavalo”, primeiro livro do romancista brasiliense Lucas Castor. A obra, que narra os dilemas do homem contemporâneo e os embaraços da masculinidade tóxica e compulsória, usa o animal como alegoria para explicar o arco do protagonista que passa pela placidez, pela fúria e, por fim, pela redenção. O envelhecimento e a malfadada impotência sexual atuam como elementos definidores do desenrolar da história e reforçam a vontade do autor em tratar na obra temas sensíveis aos homens. “Cavalo” foi finalista do Prêmio Mozart Pereira Soares em 2023, iniciativa que premia obras de escritores com até 35 anos.
Nascido na capital federal, o escritor Lucas Castor narra a dualidade de sua infância. “Minha primeira memória é a de olhar pela janela do apartamento na Asa Sul e ver um carro vermelho, muito vermelho num estacionamento amplo. Descrevi-a para os meus pais e eles não identificaram o local. Ou seja, a primeira coisa da qual me lembro é, provavelmente, uma invenção”, conta. “Na infância fui tanto feliz quanto triste. Feliz porque tive a sorte de os meus pais e a minha família me amarem muito, de morar numa casa de condomínio, onde corria à vontade pelas ruas, andava de bike, ia a casa dos amigos jogar video-game, brincava de pêra-uva-maçã-salada mista e sonhava beijar uma garota que nunca beijei”, relembra Castor. “Feliz porque depois fui morar numa chácara e corri pelo cerrado. Triste porque aos cinco anos, naquele condomínio, sofri um abuso sexual por um desconhecido. Ele me chamou para ver cartões de telefone em sua casa e fui. Feliz porque consegui sair de lá correndo. Minha infância, como a da maioria das crianças, foi ambígua”, completa.
Essas memórias tão latentes também fazem parte de “Cavalo”. Castor conta que a ideia para escrever o livro surgiu quando ele enfrentava um momento difícil.“Morava em Barcelona há pouco tempo e passava pelo meu primeiro inverno digno do nome.Estava triste e a ponto de terminar um relacionamento. Do nada, nem me lembro de quando, exatamente, uma frase surgiu no fundo da consciência: ‘É possível cavalgar um cavalo sem um cavalo’. A partir dela, comecei a escrever o romance”, conta.
A atmosfera misteriosa que permeia a concepção inicial da obra casa com o estilo em que o autor posiciona a própria escrita: “Um meio caminho entre o realismo mágico e o realismo contemporâneo”, define. “Cavalo” é narrado em duas linhas do tempo distintas, uma que conta a infância e juventude de Carlos, o protagonista, e a outra, que acompanha sua vida já na meia idade. Há dois núcleos com os quais o personagem interage nesses espaços temporais.
Primeiro, acompanhamos o protagonista lidar com a família: pai, mãe e dois irmãos, além de amigos e namorada. Na segunda linha temporal, assistimos a um Carlos acomodado com um emprego estável, porém solitário e sem expectativas para além do dia a dia entediante e ordinário. As figuras recorrentes em seu cotidiano são um colega de trabalho e a chefe. Esta última, inclusive, é quem o provoca a reagir diante da inércia na qual se encontra. A partir daí, Carlos inicia um movimento que o levará a conflitos externos e internos e mudará em definitivo sua trajetória.
“A maioria dos dilemas pelos quais Carlos, o protagonista, passa são característicos da masculinidade contemporânea. Isso não quer dizer que comecei o livro pensando ‘vou falar sobre masculinidades’”, explica Lucas. “Não. Comecei por uma frase que até hoje não sei bem o que quer dizer, então escrevi a história inscrita. É isso o que fazemos: escrever a história inscrita. Como diria Calvino: ‘quando tudo vai bem, o escritor é uma máquina de escrever’”, completa.
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O leitor que se aventurar pelas páginas de “Cavalo” perceberá que Carlos divide o protagonismo da obra com Brasília, a capital federal. Ainda que o tema central do livro não seja o Distrito Federal, é praticamente impossível dissociar a história do lugar. A composição das cenas remetem a paisagens, arquiteturas, aromas e gostos de Brasília, e ainda a sua constituição única como centro burocrático e do poder brasileiro. Castor não nega essa influência explícita, ao contrário.
“Por ser tão nova, acho que muitas das vivências em Brasília ainda ficam num plano idealizado. Por que não inventar uma outra Brasília, para dar mais concretude à real? Agora, quando volto à capital, vejo-a também como o lugar onde Carlos conheceu Magali. Isso é gostoso”, ressalta Castor. “Quis escrever um elogio a Brasília, e o recheio da cidade acabou por ser cada um desses temas: envelhecimento; masculinidade; morte; vitalidade; impotência; violência. Era o que estava ao meu redor”, completa.
A estratégia é acertada. Para quem vive na capital, o autor cria um mapa dos locais protagonistas da história e torna tudo ainda mais verossímil. Para aqueles que não conhecem o lugar, aguça a curiosidade e a vontade de visitar a jovem cidade.
Morando na Suíça atualmente, onde faz Mestrado em Escrita Criativa, Lucas destaca a importância do curso para seus desenvolvimento como escritor. “Quando me mudei para Genebra, em setembro de 2022, em razão do trabalho da minha esposa, decidi fazer um mestrado em literatura. Queria que fosse em escrita criativa, mas não encontrei nada factível na Suíça ou na França, afinal meu francês é ruim, o alemão, então”, brinca Lucas. “Deparei-me com o mestrado em Escrita Criativa da Universidade de Coimbra, e que sorte! Os professores, os colegas, as atividades, a universidade, tudo tem sido maravilhoso. Do que mais gosto no mestrado é o diálogo com outras pessoas, brilhantes e engajadas na escrita. Antes, eu escrevia quase que sozinho. Agora escrevo com um monte de gente. Recomendo, a minha escrita foi para um outro lugar. Façam cursos, oficinas, rodas de conversa. Escrever não precisa ser um ato solitário”, recomenda o autor.
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Finalista do Prêmio Mozart Pereira Soares em 2023, iniciativa que premia obras de escritores com até 35 anos, já em sua primeira publicação, Lucas se diz honrado. “Ser finalista do Prêmio solidificou algo que me escorria pelas mãos. Converse com qualquer escritor iniciante e verá a dificuldade que ela ou ele tem de se autodenominar escritor”, confessa Castor. “Escrever é algo fugidio; todo mundo escreve, então, o que um escritor faz de diferente? Imaginemos uma bandeja de gelo. De vez em quando, eu queria algumas pedrinhas para gelar minha bebida, mas abria o freezer e não havia gelo, apenas uma água mais ou menos congelada. Algo entre. A validação do prêmio, como finalista, solidificou o oposto Lucas Castor, escritor. E fiquei feliz pra caramba também, claro”, afirma.
Para 2024, Lucas, que tem entre suas referências Saramago, Murakami, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Dostoiévski, Ishiguro, Isabel Allende, Roberto Bolaño e Philip Roth, prepara um novo lançamento. “Neste ano continuo com o mestrado e pretendo lançar meu segundo romance, ‘Azul’. É a história de um cara que sai pra correr em Brasília, durante a pandemia, e muda de cor”, adianta Castor
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