Homens fomos muito mais donos do mundo até meados dos anos 1980. Foi nessa quadra da História que uma inimiga sorrateira, cínica, perversa chegou para ficar, minando a resistência de marmanjos bem-instalados em vidas frenéticas, de festas regadas a álcool, drogas e, claro, sexo livre. Em pouco mais de uma década, a aids tratou de reduzir a pó a reputação desses corcéis alados, que iam tombando atingidos em cheio em sua virilidade por um vírus novo, para o qual ainda hoje não há vacina, e que foi se alastrando para todas as camadas da sociedade, ricos e pobres; jovens e idosos; brancos e negros; homens e mulheres, a despeito do que se fizesse no silêncio das alcovas.
Por essas e muitas outras, relatos como a que Jean-Marc Vallée conduz em “Clube de Compras Dallas” continuam vigorosas, revelando um drama que a humanidade foi superando a custo, mas que nem por isso deixa de doer. A jornada de Ronald Dickson Woodroof (1950-1992) até parece a saga um tanto fantasiosa de um anti-herói meio estabanado, aprendendo, entre um tropeço e outro, a lidar com uma nova realidade e a se reconhecer nela.
O roteiro de Craig Borten e Melisa Wallack frisa momentos bons e maus da longa caminhada de Woodroof em busca de alguma qualidade de vida — enquanto, por óbvio, nunca deixava de sonhar com uma redentora cura, milagrosa e cabal —, surpreendendo-se a si mesmo com a inesperada sobrevivência diante de um cenário tão aterrador. Juntando o útil ao agradável, deu início a uma pequena revolução no tratamento da síndrome, até ser colhido por uma segunda rasteira.
Woodroof rompe o filme talvez até merecendo seu castigo, aos olhos de juízes implacáveis. Parece sempre alegre demais, pulando de cama em cama entre um e outro rodeio, nos quais aposta sua vida e a dos colegas. Pouco antes, Vallée mostrara seu protagonista num brete com duas mulheres, fazendo sexo como se não houvesse amanhã e exibindo suspeitas nódoas brancas abaixo do nariz.
Uma tosse renitente já prenuncia as conclusões acertadas do público, mas o caubói, eletricista nas horas vagas, é duro na queda. Ao escapar de uma sessão de linchamento por ter induzido outros vagabundos a empenhar dinheiro num peão inábil para um touro valente demais, salvo por Tucker, o ex-amigo de infância que enveredou para o lado bom da força e virou policial, numa sequência a um só tempo divertida e tocante com Steve Zahn, o vaqueiro chega ao trailer enxovalhado onde mora e desaba. A ação corta para um quarto de hospital razoavelmente confortável, no qual Woodroof desperta para um novo ciclo decerto impiedoso, mas que ele sabe não ser de todo imerecido.
Desse momento até o final, Matthew McConaughey se faz presente em 90% das cenas, em performances com a exata medida de trágico e de cômico; sua primeira interação, com Eve e Sevard, os médicos de Jennifer Garner e Denis O’Hare, é decisiva para que se entenda suas atitudes dali para frente, como se chamasse o destino para ver quem aguentava mais no lombo da besta feroz chamada destino. Em todo o organismo, ele dispõe de nove células T, quando um indivíduo saudável conta entre quinhentas ou até três vezes isso.
Ao longo de todo o segundo ato, Vallée aprofunda-se no martírio de Woodroof, até que na hora oportuna leva a narrativa para o thriller competente que registra a atuação do caubói como um traficante de peptídeos e vitaminas, do México para Dallas, no Texas, usadas como uma alternativa ao tratamento com azidotimidina, o AZT, inócuo e mesmo contraproducente para muitos soropositivos — a começar por ele. A parceria com Rayon, o travesti lindamente interpretado por Jared Leto, é um dos fatores que lhe garantem ter superado em muito os trinta dias de sobrevida que foram-lhe pespegados quase como uma maldição pelo doutor Sevard, depois da repulsa de parte a parte, porém mais dele para com Rayon que o contrário. A fotografia de Yves Bélanger está sempre dois ou três tons abaixo do visualmente confortável, sobretudo nas sequências no hospital, mas também nas externas, durante o dia, exacerbando a sensação de que algo deveras terrível há de acontecer.
A seu modo, Ronald Woodroof foi um pioneiro na luta contra a aids na América, inspirando movimentos de reivindicação por investimento em novas tecnologias para o combate da peste. Seu mês terminal, a partir do diagnóstico, viraram sete anos, até que morresse por complicações de uma pneumonia crônica, aos 42 anos, sete meses e nove dias. Vivendo cada minuto como se fosse o derradeiro.
Filme: Clube de Compras Dallas
Direção: Jean-Marc Vallée
Ano: 2013
Gêneros: Drama
Nota: 10