A inadequação da primeira juventude serve de metáfora a histórias que, se conseguem driblar a tentação do clichê, acabam fazendo revelações ainda inéditas sobre a inesgotável alma humana. John Cameron Mitchell alcança essa proeza em “Como Falar com Garotas em Festas”, e vai mais longe: a esquisitice deste mundo não lhe basta, e ele apela a um encontro interplanetário a fim de realçar a tragédia da existência da solidão, mormente nos verdes anos em que tudo surge-nos como a própria face da indiferença.
Mitchell sabe que não é todo mundo que sobrevive a um trauma tão prosaico e tão cheio de riscos meandros, mesmo com sequelas de alguma ordem, a exemplo do que já havia mostrado em “Hedwig and the Angry Inch” (1998), musical protagonizado por uma roqueira transgênero na Alemanha Ocidental do comunismo feroz, apaixonada por um americano que vira seu príncipe encantado. O espetáculo, adaptado para o cinema três anos depois, fora uma inspiração óbvia para o britânico Neil Gaiman, autor do conto que dá nome ao livro de onde vem o filme, fechando um ciclo cuja caótica harmonia se detecta de imediato.
O diretor e a corroteirista Philippa Goslett transformam um argumento simplório numa peça dramática sólida, plena de referências históricas que amalgamam política, comportamento e, claro, cultura, ou melhor, contracultura. Enn, um aspirante a porta-voz do britpunk, vive num universo paralelo, com a licença do trocadilho. Na sequência inicial, esse garoto endiabrado da classe trabalhadora de Croydon, subúrbio de Londres, acorda de um pesadelo e volta à idílica realidade de arruaças pseudo-revolucionárias, invadindo festas atrás da mesada que a mãe lhe prometera, discutindo com os convidados, recebendo canapés como granadas e indo parar no pub de costume, para assistir ao show de alguma bandinha experimental e, com sorte, encerrar a noite no banheiro com uma garota verdadeiramente imbuída do espírito da contestação de tudo.
É 1978, a coroação da rainha chega ao seu 25º aniversário, mas ninguém ali se sente parte da festa. Acertadamente, Mitchell preserva o caráter iconoclástico da narrativa de Gaiman, da mesma forma que Alex Sharp encarna essa ira sistêmica, genuína ou não, ocupando cada brecha da trama. Seu desempenho fica ainda mais afiado depois da noite de pocket shows de bandas de garagem, momento em que Nicole Kidman surge na pele de uma certa Boadicea, a soberana do underground londrino, responsável pela estreia de uma menina encabulada, mas, feito Enn, igualmente furiosa.
O diretor elabora o antirromance de Enn e Zan destacando suas incongruências, o que não deixa de uni-los. Elle Fanning tira de letra a inconstância da personagem, inclusive numa cena que tem tudo para ser o ponto alto da paixão recém-descoberta dos dois, mas degringola num momento escatológico nada gratuito, a primeira grande pista de que como esse caso vai acabar. Mesmo assim, catorze anos depois, em 1992, o desfecho de “Como Falar com Garotas em Festas”, com Enn (ou Gaiman?) autografando seu livro num café charmosamente funesto, é puro sentimento. À moda inglesa.
Filme: Como Falar com Garotas em Festas
Direção: John Cameron Mitchell
Ano: 2017
Gêneros: Ficção científica/Romance
Nota: 9/10