Se conhecer-se a si mesmo é, em tantos casos, uma façanha que poucos alcançam, a cabeça das outras pessoas é um verdadeiro labirinto, de cuja incursão pode-se sair tomado por uma tal desordem que alguns nem mais conseguem tornar à vida como ela é.
A aura cômico-metafísica de “Do que os Homens Gostam” esconde um filme propositalmente obscuro, que sabe muito bem como dosar graça madura e reflexões filosóficas ligeiras, mas eficazes, numa narrativa que, por óbvio, não se compromete quanto a transformar a visão de mundo do espectador sobre o que é abordado, e, ainda assim — ou por isso mesmo — balança nossas certezas.
A história, a começar pelo título, soa familiar, e é mesmo: Adam Shankman troca o sinal do gênero de “Do que as Mulheres Gostam” (2000), dirigido por Nancy Meyers, e leva a público a boa adaptação de quatro roteiristas talentosos, hábeis ao preservar a lembrança do trabalho de Meyers, já considerado um cult, refrescando o novo enredo com passagens de um humor ora assumidamente pueril, ora demasiado grave, mas sempre certeiro.
O fervilhante universo das publicações esportivas na América parece entrar em ebulição sempre que Alison Davis surge negociando cachês de atletas multimilionários. Ali rompe “Do que os Homens Gostam” tratando do ensaio de fotos de Serena Williams para a capa da “Sports Illustrated”, e nesse contato inaugural a protagonista já sente a nuvem de tensão que voeja sobre ela.
Lutadora nata, a filha de Skip, um ex-boxeador fã, claro, de Muhammad Ali (1942-2016), a quem deve o nome, vê cada dia como uma final de campeonato, e antes que encontre alguma brecha para falar da relação entre ela e o pai, interpretado por Richard Roundtree numa participação afetiva, o diretor explora minudências do cotidiano de sua heroína, que, como sói acontecer, conta com a preciosa ajuda de um escudeiro, o Brandon Wallace de Josh Brener, chegando com a roupa que mandara para a lavanderia.
Shankman destampa o caldo de reacionarismo e misoginia em que Ali está submersa até o último fio de seu cabelo impecável, revelando uma espécie de complô às investidas de ganhar uma promoção na agência em que trabalha, sobrando-lhe apenas contratos com atletas ou em início de carreira ou à beira da aposentadoria, e nenhum deles das principais ligas dos esportes mais populares entre os americanos, as prestigiosas NFL, NBA e MLB. É hora de procurar outro rumo.
Taraji P. Henson vai de um a outro extremo, da comédia inconsequente e meio tola a um drama opressivo, mas que se disfarça muito bem nas finas urdiduras do conflito principal, até quando, cansada de tanta indiferença de seus pares masculinos, na hipótese mais amena, e um desprezo quase militante, na mais espantosa, recorre à mística que jogara tarô na despedida de solteira de uma amiga, e sua vida ingressa num permanente transe mediúnico, graças a um chá bastante suspeito, em que ouve tudo o que os homens que a cercam pensam, mas, naturalmente, não têm coragem de dizer.
Como Roundtree no primeiro ato, desse ponto até o desfecho Erykah Badu vem e vai na trama como uma bruxa dos contos infantis, ajudada pela ótima caracterização de Sekinah Brown, que sobrecarrega a diva do soul com uma juba pós-black avermelhada, unhas como garras afiadíssimas e batom escuro. A princípio, esse novo e inaudito poder é um atalho para a plenitude financeira; todavia, quando se dá conta de que começa a atropelar os sentimentos dos homens malvados (e nem tanto) que atormentavam-na, quer ver-se liberta do feitiço custe o que custar. Nesse segmento, Aldis Hodge rouba a cena na pele de Will, um dedicado pai que cria a filha sozinho — exatamente como fora a vida de Ali com Skip —, encarnando a resposta que ela procurou por toda a vida.
Parábola sobre a porção Yin e Yang, macabra e lúdica de cada um, “Do que os Homens Gostam” surpreende por negar a rapidez das inferências engraçadinhas. Não é difícil supor como Ali há de reagir à epifania de que as pessoas são únicas, a despeito da personalidade que seu estado biológico outorga-lhes como normal. Soluções mágicas são críveis apenas nos sonhos mais fantasiosos.
Filme: Do que os Homens Gostam
Direção: Adam Shankman
Ano: 2019
Gêneros: Romance/Comédia
Nota: 8/10