As provas da Operação Spoofing, investigação que prendeu os hackers da Lava Jato, estão no centro de um novo capítulo do debate sobre os acordos de leniência. Empresas que admitiram corrupção e se comprometeram a restituir os cofres públicos agora avaliam solicitar acesso ao material para verificar se há brecha para pedir a revisão ou até a anulação dos seus acordos.
A Operação Spoofing prendeu o grupo responsável pela invasão dos celulares de membros da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, incluindo o ex-procurador Deltan Dallagnol, que coordenava o grupo de trabalho, e o ex-juiz e atual senador Sergio Moro, que foi titular da 13.ª Vara Federal Criminal de Curitiba, berço da investigação. As conversas hackeadas constam como provas da investigação.
A J&F foi a primeira a conseguir autorização do Supremo Tribunal Federal (STF) para receber a documentação. O ministro Dias Toffoli, autor da decisão, também determinou a suspensão do pagamento das parcelas previstas no acordo enquanto a empresa analisa as conversas. A equipe jurídica aguarda os volumes da investigação para começar um pente-fino em busca de mensagens que possam indicar atuação irregular dos procuradores.
O acordo de leniência da J&F foi assinado em 2017 com o Ministério Público Federal (MPF) no Paraná. O grupo se comprometeu a pagar R$ 10,3 bilhões ao longo de 25 anos para encerrar investigações das operações Greenfield, Sepsis, Cui Bono, Bullish e Carne Fraca. A J&F pretende usar o material da Operação Spoofing para pedir a revisão da leniência. A empresa alega que foi coagida a assinar o acordo para “assegurar sua sobrevivência financeira e institucional” e que é preciso “corrigir abusos”. Um deles seria o suposto uso de provas ilícitas. Procurado, o MPF não se manifestou.
A Odebrecht seguiu a estratégia e também pediu acesso ao material. Parte das provas do acordo de leniência da empreiteira já foram anuladas pelo ministro aposentado do STF, Ricardo Lewandowski, com base em mensagens da Operação Spoofing. Ele levou em consideração o julgamento que declarou a suspeição do ex-juiz Sergio Moro e considerou que havia “vícios” nas provas. Inicialmente, a decisão beneficiou apenas o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), mas o ministro Dias Toffoli, que herdou o processo, estendeu os efeitos ao ex-governador do Rio Sergio Cabral.
O acordo de leniência da Odebrecht foi assinado em 2016. O grupo assumiu o compromisso de pagar R$ 2,72 bilhões ao longo de 20 anos para pôr fim a investigações da Operação Lava Jato. As autoridades responsáveis pela negociação projetaram que o valor corrigido chegaria a R$ 6,8 bilhões ao final do período.
O Estadão apurou que a estratégia pode ter um efeito cascata. Outras empresas que fecharam acordos de leniência, como UTC, Andrade Gutierrez e Camargo Corrêa, também estudam pedir acesso aos autos da Operação Spoofing. Fontes ligadas às empresas ponderam, no entanto, que nem todas poderão tirar proveito das conversas. A avaliação é que o material só será útil se houver indícios de coação nas negociações. Caso contrário, poderia se tornar um tiro no pé. Por isso, uma decisão final ainda depende de maior reflexão. Procuradas, as companhias não quiseram comentar seus acordos. A UTC não retornou a reportagem.
Não é o primeiro movimento dessas empresas para tentar a revisão dos acordos de leniência. Já houve tentativas de repactuação das multas fixadas. As empreiteiras alegam que os valores foram arbitrados considerando um faturamento que já não é mais realidade no setor das grandes construções e que, apesar dos esforços para honrar os compromissos, o risco de inadimplência é iminente.
A Controladoria-Geral da União (CGU), que gerencia os acordos de leniência, tem sido inflexível diante dos pedidos de repactuação. O órgão informou, em nota, que não há margem para a alteração dos valores, apenas de cláusulas sobre prazo e formas de pagamento. Uma das demandas das empresas é pagar parcelas futuras por meio de prejuízo fiscal e de precatórios. A CGU não respondeu sobre o movimento das empresas para obter o material da Operação Spoofing.
A J&F também tenta reduzir o valor de sua multa. O argumento, no entanto, não gira em torno da redução do faturamento. Ao contrário do setor da construção, afetado pelo fim de grandes obras, como Copa do Mundo e Olimpíadas, o segmento alimentício cresceu. O grupo alega, por sua vez, que houve um erro na base de cálculo do acordo. A multa foi fixada tomando como base o faturamento global das empresas que compõem o conglomerado, mas os advogados alegam que o pacto foi fechado no Brasil e, por isso, deveria considerar apenas o faturamento nacional do grupo, não incluindo na conta valores relativos a negócios fora do País.
Outro ponto contestado são as condições atenuantes previstas na legislação para reduzir o valor da multa no caso de leniência. O percentual oferecido à J&F foi o mínimo. A empresa alega agora que abasteceu o MPF com informações inéditas e que, por isso, deveria ter recebido uma redução maior.
Os questionamentos não são dirigidos apenas às cláusulas do acordo. A J&F também busca fulminar a própria validade do negócio. Um dos maiores trunfos que o jurídico do grupo julga ter na manga são as absolvições de autoridades citadas nos anexos.
Relembre políticos citados nos acordo de leniência fechados na esteira da Lava Jato
Os acordos de leniência fechados na esteira da Operação Lava Jato foram homologados entre 2015 e 2019 e atingiram políticos de diferentes partidos e espectros ideológicos. Um dos executivos da J&F entregou aos procuradores uma lista com 1.829 nomes de 28 partidos que teriam recebido R$ 388 milhões de propinas na forma de doações oficiais de campanha.
O primeiro e mais longo anexo do acordo da J&F implicou o ex-ministro da Fazenda, Guido Mantega, que foi absolvido na esteira da Operação Bullish. Ele havia sido acusado de favorecer o grupo em financiamentos junto ao Banco Nacional do Desenvolvimento Social (BNDES), em troca de propinas.
Outros implicados na leniência da J&F, posteriormente absolvidos pela Justiça, foram o deputado Aécio Neves (PSDB-MG) e o senador Ciro Nogueira (PP-PI). O tucano foi inocentado em uma ação que o acusava de receber R$ 2 milhões em propinas e a investigação contra Ciro Nogueira, também por suspeita de propinas, foi arquivada pelo STF.
“Tem pagamento via oficial, caixa 1, via campanha, tem via caixa 2, tem dinheiro em espécie. Essa era a forma de pagar”, resumiu Joesley Batista, herdeiro do grupo, em depoimento ao Ministério Público Federal na esteira do acordo de leniência.
Uma das revelações mais emblemáticas da J&F foi a gravação que o empresário fez do ex-presidente Michel Temer (MDB) e entregou ao MPF. Joesley disse ao então presidente que estava pagando mesada ao deputado cassado Eduardo Cunha e a Lúcio Funaro, apontado como operador do ex-presidente da Câmara, para que ambos ficassem em silêncio sobre irregularidades. “Tem que manter isso, viu?”, afirmou Temer ao empresário na gravação. O ex-presidente foi absolvido.
Outro citado é o ex-governador de São Paulo e ex-ministro José Serra (PSDB). Segundo Joesley Batista, a JBS pagou R$ 7 milhões, via caixa dois, para a campanha do tucano a presidente em 2010. O processo foi arquivado em 2018 pelo STF por prescrição.
Uma das condenações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), no caso Sítio de Atibaia, também teve como base provas obtidas a partir de um acordo de leniência. A ação foi aberta a partir de anexos entregues pela Odebrecht.
A empreiteira mencionou 415 políticos de 26 partidos. O ex-ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, por exemplo, responde a uma ação penal por supostas propinas citadas pela Odebrecht nos anexos do acordo. Ele foi acusado por receber vantagens indevidas em troca do direcionamento de contratos para obras da Transpetro e da hidrelétrica de Belo Monte. A denúncia relata supostos pagamento ilícitos, entre 2011 e 2014, no valor de R$ 2,8 milhões, por intermédio do Setor de Operações Estruturadas da Odebrecht, a famosa “máquina de propinas” da empreiteira.
Em um dos depoimentos prestados no acordo, Emílio Odebrecht afirmou que procurou Lula, em 2010, para destravar duas medidas provisórias de interesse da construtora junto ao Ministério da Fazenda. O empresário disse que o filho dele, Marcelo, relatou o então chefe da pasta, Guido Mantega, “deu sequência” ao pleito. “Ele (Lula) ouviu e disse: ‘vou falar com o Guido para verificar'”, relatou. “A informação que eu tive por parte do Marcelo (Odebrecht) é que o Guido deu sequência.”
A MP 470/09 permitia que empresas exportadoras parcelassem débitos decorrentes do aproveitamento indevido do crédito-prêmio do IPI. A MP 472/09 criava um regime especial para o desenvolvimento de infraestrutura da indústria petrolífera nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Apenas a segunda foi aprovada no Congresso e convertida em lei em junho de 2010. Fonte: Notícias ao Minuto Brasil – Politica