
O fim das bilheterias para compra de passagens em estações do Metrô e da CPTM, atualmente em curso em São Paulo, é um dos sintomas de uma transformação que ocorre nos grandes centros urbanos. O que se discute é a intermodalidade ou a integração inteligente entre os sistemas de transporte, com destaque para os modos ativos, como caminhada e bicicletas, em detrimento dos carros. A tecnologia promete ser uma aliada nessas transformações, permitindo até novas formas de pagamento.
“São mudanças estruturais que demandam tempo, mas que vão trazer mais segurança e confiabilidade. Mas elas têm que ser feitas com cautela para verificar como isso está impactando a sociedade, porque mexe no dia-a-dia dos usuários. O caminho é esse: passa por dados abertos, tecnologia e passagens e bilhetes integrados até para desbloquear bicicletas”, afirma Luisa Peixoto, gerente de Políticas Públicas da Quicko.
A Quicko é uma plataforma gratuita de integração de mobilidade e compartilha informações em tempo real aos usuários do transporte público, assim como o Waze. A ferramenta ajuda o passageiro a decidir o melhor caminho, integrando ônibus, trem e metrô com bicicletas, caminhadas e veículos de aplicativo.
Em relação ao fim das bilheterias no Metrô e na CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) até o fim do ano, anunciado pelo governo de São Paulo, a ideia é a migração para o digital. A compra da passagem deverá ser realizada por WhatsApp, aplicativo TOP, máquinas ATM e em mais de 2 mil pontos comerciais distribuídos pela capital e região metropolitana de São Paulo.
De acordo com o então secretário de Transportes Metropolitanos, Alexandre Baldy, a medida garante economia de R$ 100 milhões ao ano aos cofres públicos. No entanto, a iniciativa gerou protestos, principalmente por causa das demissões de funcionários.
Para Luisa Peixoto, essa é a tendência: integração dos serviços em uma plataforma, com recarga, bilhete eletrônico e desbloqueio de catraca e também de bicicletas.
“São 74% dos brasileiros conectados à internet e mais de 90% por smartphones. As bilheterias geram um alto custo ao governo. Temos que avançar na qualificação do transporte e isso passa pelo digital. Mas falta facilidade de acesso. Parte da população não tem cartão e nem dinheiro, o que limita a pessoa de usar o que seria a preferência dela. É preciso criar infraestrutura que promova integração social”, enfatiza.
Em grandes cidades, é comum ver bicicletários ou estações de bicicletas compartilhadas em estações de metrô ou terminais de ônibus. No entanto, eles ainda são em número insuficiente. Combinar diferentes modais pode ser a solução para as pessoas otimizarem os deslocamentos.
Luisa defende que haja diversas empresas fazendo a comercialização das passagens, em diferentes plataformas, o que geraria concorrência para atender as diversas demandas. Mas reconhece que em algumas cidades faltam até recursos técnicos para implementação de inovações.
Acesso a informações de rotas, previsibilidade e uso de modais diferentes ajudam a reduzir o tempo de deslocamento nas cidades, o que impacta na qualidade de vida das pessoas ao permitir que elas decidam o que fazer com o tempo livre, como lazer.
Alexandre Feitosa é motorista, mora em Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo, e trabalha no Itaim, zona sul da capital. Ele optou por ficar com o turno noturno para não perder ainda mais tempo no deslocamento diário.
“Saio 22h de casa para ir para a avenida Nove de Julho. Entro no trabalho meia-noite. Chego lá por volta de 23h50. Demoro, em média, 1h45 no trajeto. A lotação que pego demora demais para passar no ponto, depois demora para chegar no metrô Itaquera. Depois é mais rápido, trem e metrô são os melhores transportes públicos”, diz.

No trajeto, ele usa micro-ônibus, a linha 3-Vermelha do Metrô, desce no Anhangabaú, no centro, e embarca novamente em um ônibus. Se fizesse o mesmo percurso de carro, à noite, seria bem mais rápido, porém mais caro, o que torna inviável. Se fosse de dia, também não compensaria, segundo ele, por causa do trânsito e da longa distância a ser percorrida.
“De metrô, trem e ônibus gasta menos, só que pega lotado. De dia é insuportável pegar condução onde moro. Já passa nos pontos tudo lotado. Com a pandemia, pior ainda. Deveria ter mais ônibus, lotação, principalmente nas periferias”, defende Alexandre Feitosa.
Segundo pesquisa da Rede Nossa São Paulo, de setembro, quase 65% dos entrevistados gastam até 2 horas nos deslocamentos pela capital diariamente. As regiões norte e sul concentram os maiores tempos: em média 1h30. A parcela cresce entre a classes D e E (76%). Foram ouvidas 800 pessoas.

O levantamento constatou, no entanto, que houve queda no tempo médio diário de deslocamento. Em 2021, foram 13 minutos a menos do que o registrado em 2020 (1h37). Ainda assim, a média é de 1h24.
“Com sistemas em tempo real, a pessoa pode se deslocar até o ponto de ônibus na hora exata e passar mais tempo com a família. Como a integração é mais cara entre ônibus e metrô/trem do que ônibus/ônibus, as pessoas escolhem o mais barato. Elas caminham uns 7 minutos até o ponto, de bicicleta seria mais rápido. Com integração, reduz-se o congestionamento, o tempo dentro dos ônibus, é um efeito cascata”, ressalta a especialista Luisa Peixoto.
A ideia é defendida também por Ciro Biderman, professor do Centro de Estudos de Política e Economia do Setor Público da FGV e ex-chefe de gabinete da SPTrans (São Paulo Transporte).
“Falta integração física, operacional e tarifária. Ninguém pensou ou se preocupou com isso. Estamos muitos passos atrás. Tem integração do ônibus, metrô e trem, mas não com a EMTU ou aplicativos de transporte. Seria uma solução para a periferia, para que saíssem de locais remotos e acessassem o hub de transporte. Daria para programar o percurso inteiro e há potencial até para a prefeitura economizar”, explica.

A pandemia de Covid-19 fez com que muitas pessoas e empresas aderissem ao “home office”, com isso caiu a demanda por transporte público. No entanto, com a retomada das atividades, os passageiros voltaram a usar ônibus, metrô e trens, muitos ainda com receio.
Além dos protocolos sanitários, a frequência dos ônibus e trens deveria ser maior para evitar aglomeração de passageiros nas composições e plataformas.
Kaio da Costa Bertonzin é operador de forno em uma empresa do Jaguaré, zona oeste de São Paulo. A jornada dele começa às 7h, mas ainda às 4h30 ele precisa sair de casa em Ribeirão Pires, no ABC Paulista.
“Ando uns 10 minutos até a estação, pego o trem até a Luz, faço baldeação na Linha 4-Amarela do Metrô e desço em Pinheiros, pego outro trem até a estação Jaguaré e são mais uns 10, 15 minutos de caminhada até a empresa. De bicicleta, não vale a pena porque é muita integração e não tem lugar para deixar”, conta.
Para chegar ao trabalho, o trajeto dura 1h40, já para voltar para casa, são 2h15. Ele faz uma rota diferente para poder sentar em parte do percurso. Outra opção seria usar o ônibus intermunicipal, que é mais caro e passa por mais cidades, aumentando o tempo de deslocamento para 3 horas.
“Já morei mais perto. Hoje moro longe, mas não pago aluguel. Acho que o intervalo entre os trens deveria ser igual ao do metrô. A linha de Metrô do ABC não saiu do papel e facilitaria muito. Já aconteceu do trem parar com a chuva por causa de alagamento e eu ficar das 17h30 às 21h porque não tem o que fazer”, lembra.

A pandemia trouxe também uma nova realidade: a expansão dos serviços por delivery. Mas as cidades, em geral, não estão preparadas com pontos de carga e descarga, áreas de descanso para entregadores e até mesmo pontos de entrega e retirada de mercadorias.
“Precisamos preparar as cidades para que o carro não seja o principal modal, com o uso do meio-fio não para vagas de estacionamento, mas para embarque e desembarque de passageiros de carros de aplicativo, para motos e bicicletas. Isso é relevante num contexto sem o carro como protagonista”, detalha Luisa Peixoto.
Mas para isso é preciso mudar a lógica de investimentos do poder público. Segundo estudo publicado pela Liga Insights Mobilidade, em nove anos o Brasil terá 225 milhões de habitantes e 90% da população estará concentrada em áreas urbanas. Estima-se que até 2030, o mercado global de mobilidade deva crescer até 75% e atingir valor de US$ 26,6 trilhões.
Para Ciro Biderman, as cidades tendem a priorizar o transporte individual. “Nada muda porque continuamos com a mesma governança. Os contratos de concessão não melhoraram em nada. Não se investe em corredores de ônibus porque gasta-se mais com os subsídios às empresas”.
Já Luisa Peixoto é mais otimista. “Já podemos comemorar um pouco porque temos diretrizes. Mas grande parte do orçamento ainda vai para ampliar vias, obras e viadutos. Em São Paulo, teve aumento de corredores de ônibus e da malha cicloviária, mas não é só infraestrutura. Tem que tirar esse estigma de que transporte público não é de qualidade porque quem está no carro não está tendo uma experiência melhor: fica parado no trânsito e gasta muito”, conclui.