As reminiscências sobre o Recolhimento de Presos Tiradentes, na avenida do mesmo nome, são limitadíssimas, pois na maioria das vezes se resumem a presos políticos que em sua pureza ideológica exclusiva, apresentam-se como vítimas do arbítrio institucional. Tanto que, obra de ficção, dizem que ali existia um lugar que seria conhecido como “torre das donzelas”, reservado para mulheres. Na verdade, essa torre nunca existiu. Primeiro, porque o formato da construção não é de castelo e nunca possuiu torre alguma. Segunda, porque o presídio possuía, isto sim, alas e corredores. Donzelas também foram uma ficção, apesar da presença da ex-presidente Dilma Roussef.
Tudo bem, várias estiveram por lá, é certo, mas a história macabra do Presídio Tiradentes não se resume, e nem pode, a apenas isso. Para começar, o nome do cárcere é uma ofensa ao alferes mártir da independência, duzentos anos a serem comemorados em setembro próximo.
Presos célebres passaram por lá, entres eles Monteiro Lobato (isso mesmo, o autor do Sítio do Pica-pau amarelo), o cantor Nelson Gonçalves e o destaque contravencional Ivo Noal, outrora rei do jogo do bicho. Estive muitas vezes no presídio, fazendo entrevistas, consultando o prontuário de Lobato e descobrindo ali a grande matriz dos prisioneiros, condenados à morte, que seriam executados pelo Esquadrão da Morte, bando que agiu em São Paulo no começo dos anos setenta.
Esse importante detalhe nos remete ao raios-x do presídio: era um depósito de gente, um enruste, um amontado de seres humanos que a rigor não existiam: o Tiradentes era um presídio exclusivo para o Departamento de Investigações, hoje Deic, onde ficavam presos para “averiguações”. As prisões não eram registradas. Ali chegou a ficar uma média de 700 presos, nenhum com acusação formalizada. Muitos eram retirados no escuro da noite para os fuzilamentos sumários do Esquadrão. Alguns eram esquecidos lá dentro, chegando a ficar meses sem ter a menor ideia das razões do cativeiro.
Nem tudo foi totalmente desumano: um diretor, Nilo Faria Holmeister, indignado com a péssima, horrível e intragável comida que era levada ao presídio em latões, juntou todos eles e mandou jogá-los à porta do Palácio da Polícia, na rua Brigadeiro Tobias. Seu surpreendente protesto, além de não gerar providência alguma, significou o seu imediato afastamento das funções.

Compreende-se: diante do Tiradentes, absurdamente ilegal, havia um consentimento legal, absurdamente proporcionado pelo Judiciário e Ministério Público, que nunca tomaram qualquer providência diante daquela tétrica e kafkiana anomalia. Um ritual: os presos do Tiradentes eram regularmente retirados para serem torturados na Polícia, geralmente pendurados num cavalete, mais conhecido como pau-de-arara, ou tomava choques em chão molhado. Mas isso, até hoje não importa: a memória que se procura construir se restringe aos militantes clandestinos engajados numa utópica luta armada, causa única da criação de uma violentíssima repressão sistematizada.
Posso dizer isso com absoluta convicção: vivi durante esse período, denunciei sozinho os crimes do Esquadrão (novamente, Judiciário e promotores foram coniventes durante muito tempo), fui enquadrado na Lei de Segurança Nacional e processado pela Justiça Militar e ninguém precisa me contar o que historicamente testemunhei. E nunca pedi nenhuma indenização por isso.
Às origens: tudo começou em 1852, com a criação de uma Casa de Correção, cadeia pública reservada para escravos fugitivos e também os rotulados como “arruaceiros” ou ”vadios”, instalada no Pátio do Colégio, palco do nascimento da cidade. Mudou-se, depois, para a avenida Tiradentes, foi calabouço na Era Vargas (1937-1945). Tempos em que Monteiro Lobato, ardoroso defensor do petróleo brasileiro, por posicionar-se (“o petróleo é nosso”) num documento de 15 folhas, atraiu a ira de Getúlio. Foi preso e condenado a seis meses de prisão, dos quais cumpriu três no Tiradentes, onde ficou na cela número 1.
Da história horripilante do Tiradentes, consta o seu início na época de Washington Luís, então secretário de Segurança e Justiça, eleito presidente e deposto por Getúlio em 1930. Mas esse teatro de horrores ficou insuficiente para tantas atrocidades: foi criado, então, o Presídio do Hipódromo, na rua do mesmo nome, onde ocupou um antigo casarão em rua residencial. Mais um depósito de presos irregular e ilegal, de novo com presos à disposição do Departamento de Investigações, sem nenhuma culpa formada, uma vez mais recolhidos para “averiguações”, ou seja, prender primeiro para interrogatórios para extrair confissões e eventuais investigações posteriores.
Como se vê, não existe apenas personagens cobertos por uma aura que se considera épica, e sim uma legião, anônima e incógnita, sofrida, de gente que nem sabia os motivos pelas quais estaria presa, diante de captores que se transformavam em inquisidores e carrascos. Registre-se tudo isso, nada de lixo debaixo do tapete, nada de enaltecer alguns e não tomar o mínimo conhecimento da imensa maioria, ad perpetuam rei memoriam, isto é, para perpétua lembrança da coisa.
Essa ignorância dolosa me irrita e aborrece. A História não tem um lado só. Fui muitas vezes ao Tiradentes. Claro que nunca vi nenhuma torre ou donzelas. Lá dentro, entrevistei Nelson Gonçalves, preso em flagrante, acusado de tráfico, preso pelo investigador Angelino Moliterno, o Russinho, e o delegado Carlos Ferreira Castro, da antiga Delegacia de Entorpecentes. Os demais presos pediram para que ele cantasse a famosa volta do boêmio. Nelson tinha um vozeirão, recebeu elogios até de Frank Sinatra, foi campeão na venda de discos que só perdeu para Roberto Carlos. Nelson contou-me que deixou-se viciar pela cocaína, mas nunca chegou a traficar, argumento que convenceu a Justiça a libertá-lo. Hoje, sua filha Lilian, empresária da noite, foi a criadora do Bar do Nelson, no bairro de Santa Cecília, onde do repertório musical só constam músicas cantadas pelo pai, interpretando as letras de Adelino Moreira.
Outro entrevistado, cujas informações me permitiram fazer uma série de reportagens para o finado Jornal da Tarde, revelando todos os segredos dos bastidores do jogo do bicho, foi o banqueiro Ivo Noal. Fiz as entrevistas necessárias sempre à noite, para despertar menos atenções, e principalmente para que não se soubesse qual seria a fonte de tantas e bombásticas matérias.
A cidade cresceu. O metrô tornou-se necessário. Em 1972, chegou a vez de construir a estação Tiradentes. O presídio foi demolido. Preservou-se o portal de entrada, construído em pedra, tombado pelo patrimônio histórico, com histórias de vida praticamente ignoradas pelas novas gerações. Relatos equivalentes à casa dos mortos, de Dostoievski, as memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, e Papillon, do Henri Charrière.
O passado condena. Envergonha. Daí a tentativa de destruí-lo, com a demolição do Tiradentes, a implosão da Casa de Detenção e a desativação do presídio da Ilha Anchieta. Como escreveu Garcia Márquez, o Nobel de literatura, a vida é o que a gente recorda, e como recorda para contá-la.